Latifúndio, violência; campesinato, classe social que luta pela terra. Por Gilvander Moreira[1]
O latifúndio não é apenas o cercamento de um território que pode ser medido em hectares e alqueires, mas significa poder e muita violência perpetrada pela transformação da terra em mercadoria, o que aconteceu “com o crescimento do capitalismo e com a transformação agrária na Inglaterra” (MARÉS, 2003, p. 26) e se espalhou pelo mundo. A falta de luta pela terra ou lutas ingênuas e equivocadas pela terra aprofundam a violência e o poderio de quem controla a terra para fins capitalistas. A estrutura fundiária brasileira se constitui de minifúndio, propriedades médias e latifúndios. O conceito latifúndio vem do latim latifundium, que é composto do adjetivo latus (amplo, grande, extenso) e do substantivo fundus (fundo, base, domínio rural), são as propriedades rurais que têm área acima de 15 módulos rurais. Derivado do conceito de propriedade familiar, o conceito de módulo rural, segundo o Estatuto da Terra (Lei nº 4504, de 1964), trata-se de uma unidade de medida agrária de “imóvel rural que, direta e pessoalmente, explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com ajuda de terceiros” (inciso II, do artigo 4º da lei nº 4504/64).
Além de ‘módulo rural’, há também ‘módulo fiscal’, que é uma unidade de medida agrária usada no Brasil, instituída pela Lei nº 6.746, de 10 de dezembro 1979 e corresponde à área mínima necessária a uma propriedade rural para que sua exploração seja economicamente viável.
A luta pela terra por si só não garante a reprodução social do campesinato, compreendido enquanto classe social dos camponeses, que envolve o/a trabalhador/a que vive, trabalha e resiste na terra, a partir da terra e que luta pela terra quando a perde. O campesinato não é uniforme, mas constituído por uma imensa diversidade camponesa. Integra o campesinato os posseiros, os boias-frias assalariados, pequenos proprietários, os ribeirinhos, os geraizeiros, os seringueiros, as populações dos manguezais, os acampados, os assentados, as mulheres quebradeiras de coco babaçu, os faxinalenses, os cipozeiros, os camponeses de fundo e fecho de pasto, os retireiros, os caiçaras, os ribeirinhos, os pescadores, os caatingueiros, os castanheiros, os extrativistas, os atingidos por barragens, os atingidos pela mineração, os atingidos pelos linhões de transmissão de energia, os atingidos pelos parques de energia eólica, os sem-terra etc. “A luta do campo é uma luta muito diversificada” (MARTINS, 1991, p. 34). Importante notar que o MST, no nome e na sua bandeira, se identifica como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e não como Movimento dos Camponeses Sem Terra. Óbvio que o nome carrega o contexto e os objetivos iniciais do Movimento. Com o fortalecimento do Movimento houve ampliação dos objetivos, da atuação e, nos últimos 20 anos, o MST, mesmo sem ter alterado seu nome e sua bandeira, enfatiza o conceito ‘camponês’, porque compreende a importância política de afirmar o campesinato: a classe camponesa. O MST é um movimento social popular, sindical e político. Popular, pelo fato de toda família participar: crianças, jovens, mulheres, adultos e idosos, o que dá à luta pela terra um caráter de luta popular. Sindical, porque reivindica seus interesses corporativos tais como: crédito, saúde, educação, estradas, melhor preço para os produtos da agricultura familiar etc. E político, porque o MST luta por terra para todas as famílias sem-terra e por transformação no poder político do País que leva à superação do capitalismo.
O campesinato constitui-se como classe social dentro do capitalismo. Expropriado do seu meio de produção, o camponês tem fome e sede de terra. A fome e a miséria não são um problema natural, mas “social, político e cultural” (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 213). Com raiz na terra, mesmo quando é expulso da sua terra de origem, o camponês, com os valores da terra no seu íntimo, tem sempre a perspectiva de retornar a ela, mesmo que não seja a sua terra natal. Nesse sentido, Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirma que “o campesinato e o latifúndio devem ser entendidos como de dentro do capitalismo e não de fora deste. […] O campesinato deve, pois, ser entendido como classe social que ele é. Deve ser estudado como um trabalhador criado pela expansão capitalista, um trabalhador que quer entrar na terra. O camponês deve ser visto como um trabalhador que, mesmo expulso da terra, com frequência a ela retorna, ainda que para isso tenha que (e)migrar” (OLIVEIRA, 2007, p. 11).
“As palavras ‘camponês’ e ‘campesinato’ são das mais recentes no vocabulário brasileiro” (MARTINS, 1983, p. 21), introduzidas pelas esquerdas nas décadas de 1950/60. Antes, os camponeses eram chamados de caipira, caiçara, tabaréu, caboclo, em tom depreciativo. “Também os proprietários de terra tinham designações distintas conforme a região e a atividade: estancieiros no Sul; fazendeiros em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Paraná; senhores de engenho no Nordeste; seringalistas no Norte” (MARTINS, 1983, p. 22). Também esses “passaram a ser designados como latifundiários. Essas novas palavras – camponês e latifundiário – são palavras políticas, que procuram expressar a unidade das respectivas situações de classe e, sobretudo, que procuram dar unidade às lutas dos camponeses […], duplamente excluídos: da condição de proprietário de terras e da condição de escravo” (MARTINS, 1983, p. 22 e 38).
No império romano, paganus designava o habitante dos campos, o civil em oposição à condição de soldado. Paganus, em latim, se tornou payan, em francês, e peasant, no inglês, que significa camponês. Em português, paganus se tornou paisano, o que não é militar, e também se tornou pagão, que faz referência a não cristão. “Vivendo na terra e do que ela produz, plantando e colhendo o alimento que vai para a sua mesa e para a do príncipe, do tecelão e do soldado, o camponês é o trabalhador que se envolve mais diretamente com os segredos da natureza” (MOURA, 1988, p. 9). Em qualquer sociedade, o camponês é sempre um oprimido e um subordinado aos donos da terra e do poder. “O campesinato é sempre um pólo oprimido de qualquer sociedade. Em qualquer tempo e lugar, a posição do camponês é marcada pela subordinação aos donos da terra e do poder, que dele extraem diferentes tipos de renda: renda em produto, renda em trabalho, renda em dinheiro” (MOURA, 1988, p. 10).
O campesinato se constitui de camponeses com fisionomias variadas. É um cultivador de pequenas extensões de terra, um pequeno proprietário rural, que é um camponês parcelar. Mas esse conceito não carrega a grande vitalidade e a força histórica do conceito camponês, pois “como não se pode declinar do conceito de burguesia para falar tão somente em capitalistas, não é possível preterir o conceito de camponês para falar apenas em pequeno produtor” (MOURA, 1988, p. 14).
Em um contexto de terras não ainda apropriadas privadamente, “os camponeses que aí residem, juridicamente denominados posseiros, trabalham apenas para seu próprio sustento” (MOURA, 1988, p. 12). Outra forma de definir o camponês “é a de conceituá-lo como o cultivador que trabalha a terra, opondo-o àquele que dirige o empreendimento rural. Aqui, o conceito é estendido a todos os cultivadores que, através do seu trabalho e do de sua família, se dedicam a plantar e transferir os excedentes de suas colheitas aos que não trabalham a terra” (MOURA, 1988, p. 13).
O camponês é um produtor que se define por oposição ao não produtor. É nesse sentido que expressa o grito dos Sem Terra que buscam apoio junto às trabalhadoras e aos trabalhadores da cidade: “Se o campo não planta, a cidade não janta!” “O campesinato é constituído de cultivadores que se definem em oposição à cidade; esta, por sua característica de sede de poder político, subordina os trabalhadores da terra” (MOURA, 1988, p. 14).
Referência
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.
______. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1988.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf .
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter; Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso de recursos naturais. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, p. 207-253, 2004.
Belo Horizonte, MG, 26/6/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 – Camponeses na luta por terra, teto e pão, em Nova Serrana, MG. Acampamento Nova Jerusalém. 11/5/2018.
2 – Terra para gado e não para camponeses. Ocupação Nova Jerusalém em Nova Serrana, MG. 27/5/2018.
3 – Violência do latifúndio aumenta no norte de MG/Audiência Pública/ALMG/Toninho do MST. 25/4/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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