33 anos da publicação do projeto Brasil: nunca mais e sua denúncia dos crimes de tortura
Lamentavelmente, o tema tortura praticada pelo Estado contra presos políticos foi relembrado em nosso país. Neste contexto, é bom relembrarmos o trabalho dirigido pela Igreja Católica, o Projeto Brasil: nunca mais. Vamos reler o prefácio do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns ao livro, cujo projeto foi concluído 1985, ao final dos 21 anos do Regime Militar. Este livro é fruto de profunda pesquisa e recolhimento de depoimentos, fazendo um levantamento do sistema repressor e da heroica resistência à ditadura. Mostra de que lado a Igreja Católica se colocou. Relata os horrores da tortura feita pelo estado contra os cidadãos. Dentre seus objetivos, está “que ninguém termine a leitura deste livro sem se comprometer, em juramento sagrado com a própria consciência, a engajar-se numa luta sem tréguas, num mutirão sem limites, para varrer da face da Terra a prática das torturas”. Infelizmente, sua leitura torna-se atual.
Brasil Nunca Mais
Um Relato para a História
Prefácio do Cardeal-Arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns
Testemunho e Apelo
As angústias e esperanças do Povo devem ser compartilhadas pela Igreja. Confiamos que esse livro, composto por especialistas, nos confirme em nossa crença no futuro.
Afinal, o próprio Cristo, que “passou pela Terra fazendo o bem”, foi perseguido, torturado e morto. Legou-nos a missão de trabalhar pelo Reino de Deus, que consiste na justiça, verdade, liberdade e amor.
As experiências que desejo relatar no frontespício desta obra pretendem reforçar a idéia subjacente em todos os capítulos, a saber, que a tortura, além de desumana, é o meio mais inadequado para levar-nos a descobrir a verdade e chegar à paz.
- Durante os tempos da mais intensa busca dos assim chamados “subversivos”, atendia eu na Cúria Metropolitana, semanalmente, a mais de vinte senão cinquenta pessoas. Todas em busca do paradeiro de seus parentes.
Um dia, ao abrir a porta do gabinete, vieram ao meu encontro duas senhoras, uma jovem e outra de idade avançada.
A primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo:
“É a aliança de meu marido, desaparecido há dez dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurá-lo?”
Até hoje, nem ela nem eu tivemos resposta a essa interrogação dilacerante.
A senhora mais idosa me fez a pergunta que já vinha repetindo há meses:
“O senhor tem alguma notícia do paradeiro de meu filho?”
Logo após o sequestro, ela vinha todas as semanas. Depois reaparecia de mês em mês. Sua figura se parecia sempre mais com a de todas as mães de desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a busca de seu filho, através da Comissão Justiça e Paz e mesmo do Chefe da Casa Civil da Presidência da República. O corpo da mãe parecia diminuir, de visita em visita. Um dia também ela desapareceu. Mas seu olhar suplicante de mãe jamais se apagara de minha retina.
Não há ninguém na Terra que consiga descrever a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu. O “desaparecido” transforma-se numa sombra que ao escurecer-se vai encobrindo a última luminosidade da existência terrena.
Para a esposa e a mãe, a Terra se enche de trevas, como por ocasião da morte de Jesus.
- Numa noite singular, chegou à minha residência um juiz militar, que estudara em colégio católico e demonstrava compreensão para a ação da Igreja de São Paulo, empenhada na defesa de presos políticos.
A certa altura, a conversa toma rumo oposto. O magistrado, aparentemente frio e objetivo, se comove. Acaba de receber dois documentos – diz ele – provenientes de fontes diversas e assinados por pessoas diferentes. Dois presos políticos afirmam terem assassinado a mesma pessoa, em tempo e circunstâncias totalmente inverossímeis. E ele, juiz, a concluir:
“Imagine o senhor a situação psicológica, e quem sabe física, de quem chega ao ponto de declarar-se assassino, sem o ser!”
O inquérito sob tortura, ou ameaça de tortura, no entanto, chega a absurdo e inutilidade ainda maiores:
- O engenheiro, antes de prestar depoimento à Comissão Justiça e Paz, me relata o seu drama.
Nada tinha a temer, quando foi preso. Como, no entanto, ouvira que a tortura era aplicada a quem não confessasse, ao menos, alguma coisa, foi preparando a mente para contar minuciosamente tudo que pudesse, de qualquer forma, ser interpretado como sendo contrário ao regime. Diria até mais do que numa confissão sacramental. Não conseguiu.
Após tomarem seus dados pessoais, fizeram-no assentar-se, de imediato, na cadeira do dragão e, a partir desse momento, conta-me ele:
“Tudo se embaralhou. Não sabia mais o que fizera, nem mesmo o que desejava contar ou até ampliar, para ter credibilidade. Confundi nomes, pessoas, datas, pois já não era mais eu quem falava e sim os inquisidores que me dominavam e me possuíam no sentido mais total e absoluto do termo”.
Como e quando há de recompor-se um homem inocente, assim aviltado?
- O que mais me impressionou, ao longo dos anos de vigília contra a tortura, foi porém o seguinte: como se degradam os torturadores mesmos. Esse livro, por sua própria natureza, não pode dar resposta plena à questão. Daí o meu testemunho:
Quando foram presos os líderes da Ação Católica Operaria, em fins de janeiro de 1974, tive ocasião de passar quatro tardes inteiras, no interior do DEOPS, na esperança de avistar-me com eles. Eu havia sido chamado para tanto, de Curitiba, onde passava os dias com todos os irmãos, que confortavam a mãe em seus últimos dias de vida.
Durante a longa espera, nos corredores da cadeia, pude entreter-me com delegados que presidiam a inquéritos, semelhantes aos que virão descritos nesta obra. Cinco deles me contaram de seus estudos em colégios católicos e um deles na Universidade Católica de São Paulo. Cada qual com problemas sérios na família e na vida particular, que eles próprios atribuíam à mão vingadora de Deus. Instados a abandonar esta terrível ocupação, respondiam:
“Não dá. O senhor sabe por quê!”
Na sexta-feira à tardinha pude afinal avistar-me com dois dos nossos agentes de pastoral, em situação lastimável, na presença mesmo dos delegados que encarei firmemente.
Um deles, meses após, me esperava, ao final da missa, sozinho, na igreja da Aclimação. Abordou-me, num grito de desespero:
“Tem perdão para mim?”
Só onze anos depois, em março de 1985, fiquei sabendo que, na manhã de 12 de fevereiro de 1974, um delegado fizera subir os presos para anunciar-lhes, com ar triunfante e cínico, que minha mãe havia morrido no dia anterior. Os presos baixaram os olhos e nada disseram.
Lembrei-me então da advertência de um general, aliás contrario a toda tortura: quem uma vez pratica a ação, se transtorna diante do efeito da desmoralização infligida. Quem repete a tortura quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico e psíquico tamanho que é capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da própria família!
A imagem de Deus, estampada na pessoa humana, e sempre única. Só ela pode salvar e preservar a imagem do Brasil e do mundo.
Brasil: nunca mais. Arquidiocese de São Paulo, Ed. Vozes, 1985
Abaixo, programa Palavra Ética, com Frei Gilvander e entrevista com frei Fernando Brito: preso 4 anos nos porões da ditadura militar. 21/11/2012