As consequências devastadoras dos processos minerários são amplamente conhecidas, seja pelos recentes crimes em Minas Gerais, particularmente Brumadinho e Mariana, seja pela desagregação do tecido social verificados nas inúmeras experiências de exploração mineral no Brasil e no mundo. A despeito das promessas de sustentabilidade (“lavagem verde” praticada pelas empresas visando ampliação de seus lucros) e de crescimento econômico, a megamineração tem alimentado um modelo econômico predatório, que concentra riqueza, aprofunda a desigualdade e exacerba o racismo ambiental. Defender a mineração do lítio no Vale do Jequitinhonha é, pois, defender um projeto de morte!
O capitalismo moderno colonial ataca o Vale do Jequitinhonha desde as primeiras expedições no território com as sucessivas guerras contra os povos originários, com a mineração escravista, com o poder de fazendeiros-coronéis e dos ditos projetos de desenvolvimento.
Através das lógicas de expropriações materiais e simbólicas, o Vale do Jequitinhonha foi estigmatizado como região problema, como um bolsão de pobreza, o que o tornou uma “zona de sacrifício”, lugar no qual pode se extrair bens naturais e mão de obra para a superexploração. Uma população majoritariamente negra vitimada por uma lógica societária extremamente desigual que favorece as elites locais e os proprietários dos complexos agroindustriais das regiões “desenvolvidas” do sul e do sudeste brasileiro. Atividades que arrancam do ventre das mulheres negras e indígenas do Vale do Jequitinhonha, tornadas “viúvas de maridos vivos” pela migração sazonal, a força de trabalho submetida a condições análogas à escravidão. Tudo isso em prol do progresso! Fica evidente que nesta região as propostas elaboradas pelo Estado não trouxeram o desenvolvimento para dentro e há uma dívida histórica de acesso e inclusão de políticas públicas para a população da região. Não podemos repetir os mesmos erros, por isso se faz necessário construir com o povo que foi expropriado o desenvolvimento que lhes permitam permanecer no território.
O discurso da pobreza do Vale do Jequitinhonha foi largamente mobilizado pelos grupos sócio-econômicos dominantes para angariar investimentos governamentais – intervenções que ampliaram a desigualdade social, a degradação sócio-ambiental, a expropriação dos bens comuns e, que incidiram negativamente na reprodução do modo de vida da população local. Além da expropriação de terras tradicionalmente ocupadas para a montagem de fazendas, as comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha sofreram, a partir da década de 1970, com projetos voltados para a produção energética, dentre os quais a monocultura de eucalipto para a produção de carvão para o atendimento do setor de siderurgia e a construção da usina hidrelétrica de Irapé, inaugurada em 2006. Todos projetos que tinham como promessa a “redenção do Vale”. Todos esses regimes de acumulação estiveram fundados em uma lógica exploratória marcada pela exportação de água e território (monocultura do eucalipto, pecuária, mineração, energia elétrica), tornando árduas as condições de produção de vida em uma região semiárida.
Os agentes econômicos que representam a megamineração do lítio na região afirmam realizar “mineração a seco”. No entanto, enquanto cada núcleo familiar de comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha dispõem de uma caixa d’água de 16.000 litros para consumo doméstico por 8 meses (período de estiagem), ou seja, 2 mil litros por família/mês, a outorga da Agência Nacional das Águas – ANA para apenas uma das empresas em operação nos municípios de Araçuaí e Itinga é de 3,8 milhões de litros/dia (100 milhões de litros/mês), o que daria para abastecer 34.000 famílias. Dados que demonstram a produção da escassez de água para nutrir a vida das famílias na região, enquanto a capacidade hídrica do rio Jequitinhonha é canalizada para alimentar o capital.
As cascatas de violência de todos esses períodos históricos resultaram, em todos os casos e sem exceção, na expropriação de territórios tradicionalmente ocupados, na degradação ambiental, na superexploração de homens, mulheres e crianças. Esses processos têm vulnerabilizado as condições de existência de muitas formas de vida no Vale do Jequitinhonha, criando uma realidade histórica em que se pode reconhecer sequências de práticas de ecocídios, genocídios e epistemicídios.
Enquanto um coletivo de organizações e movimentos sociais que atua há várias décadas no Vale do Jequitinhonha na luta por direitos e defesa do território, temos resistido. Em continuidade às lutas ancestrais, mencionamos abaixo trechos de documentos produzidos em diversos momentos de mobilização popular frente à ameaça de aprofundamento da violência, da pauperização e da destruição dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais representada pelos recentes empreendimentos minerários.
Em 27 de julho de 2019, os povos originários Pankararu e Pataxó e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) reivindicaram na Carta “Dos Vales ao Mar” que:
“O Território do Vale também deve ser considerado como SER VIVO. Apesar da Constituição de Minas Gerais considerar o rio Jequitinhonha um patrimônio natural do estado, é notória a contradição quando estão em perspectiva os interesses do capital. Nessas situações os governos e órgãos licenciadores autorizam e participam de empreendimentos que degradam o rio e toda a Mãe Terra (hidrelétricas, termelétricas, barragens, mineração, dentre outros empreendimentos agroindustriais de larga escala) que causam a intoxicação dos rios, córregos, nascentes, fauna, flora e solo, ameaçando a vida do território e das várias populações que o habitam.”
Representantes de 61 comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha (povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais de pescadores artesanais, agroextrativistas, artesãs, groteiras-chapadeiras, vazanteiras, geraizeiras), organizações e movimentos sociais se reuniram em Araçuaí, entre 09 e 11 de junho de 2022, durante o “Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Jequitinhonha”, evento de encerramento da 1ª etapa do Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais do Alto/Médio Jequitinhonha, e declararam:
“A luta em defesa do nosso modo de vida tem sido incansável e diária. Nossos Territórios Tradicionais estão sendo expropriados. Exigimos respeito aos Protocolos Comunitários de Consulta, que devem dizer como o Estado, as empresas e outros devem ou não atuar em nossos territórios. Estes protocolos foram construídos e conquistados com muita luta e devem ser ampliados para que tenhamos a garantia da autonomia sobre nossos territórios, recursos naturais e saberes tradicionais associados que conformam nossos modos de vida. Denunciamos todas as ameaças que sofremos. Gritamos contra o Estado que viola nossos direitos territoriais, vende e ou facilita o acesso dos nossos territórios aos grandes empreendimentos; incita o medo aos nossos parentes; divide nossas comunidades; implanta projetos de infraestrutura que não dialogam com nossa cultura, nossa tradição; nos priva dos direitos de acesso à água, saneamento, moradia; retira nossos direitos sociais conquistados; nos fornece uma educação formal que não dialoga com a nossa cultura e modo de vida, que não fala nossa língua e que viola nossas identidades. DENUNCIAMOS E NÃO MAIS TOLERAMOS o agro e hidronegócio, as barragens hidrelétricas, as empresas de monocultura do eucalipto e as mineradoras que: abrem furos de prospecção e deixam as crateras da cobiça em nosso chão, aprisionam e matam os nossos rios, roubam as nossas chapadas e secam todas as nossas fontes de vida; que invadem nossos territórios e pulverizam venenos contaminando a nossa mãe terra e nossas gentes – dizendo que são os donos. EXIGIMOS que o Estado realize ações que promovam: o retorno das águas em nossas veredas, nascentes e córregos; a fiscalização da contaminação dos solos e das águas; a aceleração dos processos de reconhecimento identitários, a emissão de certidões de autoidentificação, bem como dos processos de regularização fundiária das nossas terras tradicionalmente ocupadas.”
Por ocasião da apresentação, na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, do Projeto de Lei nº 1992/2020 que propõe a criação do Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, a Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT/MG), manifestou sua indignação e repúdio nos seguintes termos:
“Somos contrários a qualquer iniciativa que promova a criação, fortalecimento e incentivo da cadeia de exploração da mineração. Os eventos de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) evidenciam que a atividade minerária ameaça o meio ambiente e a existência de grupos em situação de vulnerabilidade social, muitas vezes já criminalizados pelos interesses do grande capital. A ausência de Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos indígenas, quilombolas, pescadores, povos e comunidades tradicionais, assentados e assentadas da reforma agrária dos vales Jequitinhonha e Mucuri caracteriza uma ilegalidade em todo o processo de licenciamento ambiental, considerando que o Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O desenvolvimentismo adotado por governos no Brasil reforça uma lógica conservadora e colonial, estruturada em um modelo econômico e social que busca criar uma falsa percepção de bem-estar social e equilíbrio ambiental. A estrangeirização das terras e também as isenções fiscais, como a que consta no Art. 3º, VII do PL 1992/2020, são ferramentas desse modelo, que amplia a acumulação de capital, destrói territórios e ameaça povos e comunidades tradicionais que lutam para sobreviver diante desse sistema.
[…]
Enquanto a mineração for motivada pela ganância e lucro das grandes empresas, ameaçando e impactando as comunidades camponesas, os povos e as comunidades tradicionais, os povos originários, os assentamentos da reforma agrária, a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG) continuará se opondo a esse modelo de desenvolvimento que alimenta a violência, os conflitos no campo e promove injustiças sociais e destruição ambiental.“
O Movimento dos Atingidos por Barragens de Minas Gerais (MAB MG) afirmou que nos vales do Jequitinhonha e Mucuri, o referido projeto de lei viola o direito de povos e comunidades tradicionais. Para o Movimento:
“O Projeto de Lei que cria o Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri está sendo votado na ALMG sem a participação efetiva do povo mineiro, inclusive o povo tradicional da região. A proposta foi criada em 2020 durante a pandemia, ou seja, em um momento de baixa participação popular no debate.
O MAB compreende que propor um PL que atinge diretamente a vida do povo do Jequitinhonha e Mucuri, que são regiões ricas em comunidades tradicionais, sem diálogo com a população tradicional e com os mineiros é no mínimo desrespeitoso.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) possui a definição de quem são os povos e comunidades tradicionais e estabelece a obrigação dos governos em reconhecer e proteger os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais próprios desses povos.
A Convenção institui ainda a obrigatoriedade de consulta livre, prévia e informada aos povos tradicionais, mediante procedimentos apropriados, toda vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de atingi-los diretamente. Essas medidas podem ser tanto adotadas pela esfera pública quanto pela esfera privada.”
No dia 03 de maio de 2023, o Ministério Público de Minas Gerais – MPMG, por meio de sua Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (CIMOS), recomendou ao Conselho da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão a anulação da votação que autorizou a pesquisa mineral de lítio na região, através do N. 02/2023- procedimento N. MPMG-00323.00145-4. A APA possui mais de 130 nascentes catalogadas e, por isso, é considerada a caixa d’água do município de Araçuaí. Ao todo, mais de 300 famílias vivem no território, incluindo comunidades tradicionais quilombolas,por isso entende -se que a área da” APA do Lagoão”é um patrimônio imaterial e deve ser preservado.
O modelo de transição energética na região projetado não produz energia limpa, pois não há como se produzir energia limpa com violação de direitos humanos e poluição ambiental. Desde quando a empresa SIGMA começou a explorar lítio da Grota do Cirilo em Itinga, a comunidade Piauí Poço Dantas vem sofrendo várias violações de direitos e questões ambientais, conforme foi divulgado em nota do MAB:
“Nesta semana, atingidos da comunidade de Piauí do Poço Dantas, distrito de Itinga no médio Jequitinhonha, receberam o Ministério Público de MG para um diálogo e denúncia da situação enfrentada.Desde 2022, os moradores enfrentam problemas cotidianos como o adoecimento respiratório por causa da poeira da exploração, rachaduras e trincas nos imóveis e também o aumento das violações ambientais e piora na qualidade de vida.Por inúmeras vezes, a comunidade procurou a empresa Sigma Lithium para resolver os problemas, mas não houve diálogo.O episódio mais grave e recente no território, foi a inundação causada na casa de uma idosa. Com as chuvas, o desvio feito pela empresa levou o curso das águas de chuva e minério para o imóvel. Além disso, os rejeitos desaguaram no ribeirão Piauí que banha a comunidade. Os moradores cobram do Ministério Público apoio com relação à situação e uma solução para os problemas”
Por tudo isso, REIVINDICAMOS que o VALE DO JEQUITINHONHA seja TERRITÓRIO LIVRE DE MINERAÇÃO!
Araçuaí – MG, Março de 2024
ASSINAM:
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG
Comissão de Consulta Prévia, Livre e Informada para Implantação do Campus Quilombo do IFNMG em Minas Novas, Vale do Jequitinhonha/MG
Aldeia Cinta Vermelha – Jundiba Pankararu-Pataxó
Povo Aranã Caboclo (Kaabok)
Cáritas Diocesana de Araçuaí
Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha (COQUIVALE)
Vanderlei Pinheiro de Souza – Presidente do Conselho Gestor da APA
Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI) do Campus Araçuaí do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG)
Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)