Dandara, em Belo Horizonte: a luta da ocupação é contra especulação!
“Ô Dandara, ô Dandara ó, a nossa luta aqui vale mais que ouro em pó”.
Na madrugada do dia 09 de abril de 2009, cerca de 150 famílias sem-teto, organizadas pelas Brigadas Populares e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto (MST), com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocuparam uma área de 315 mil m², no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG, propriedade que não cumpria há décadas a função social. Quatro dias depois, em função do enorme déficit habitacional que assola as cidades brasileiras, havia um mar de barracas de lonas composto por mais de 1.000 famílias dispostas a lutar pelo direito à moradia. Atualmente cerca de 2500 famílias moram na comunidade.
No mesmo ano que surge a ocupação-comunidade Dandara surge o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Ali já ficava claro o embate entre dois projetos de cidade contrapostos. De um lado, um programa habitacional que transforma moradia em mercadoria a ser produzida em aliança entre Capital-Estado como forma de movimentar a economia em um contexto de crise econômica, privilegiando construtoras e seus lucros. De outro lado, famílias sem-teto que construíram uma comunidade auto-organizada com planejamento popular, com muita luta e consciência coletiva de que é justo insurgir contra uma situação de opressão da classe trabalhadora que vive superexplorada nas periferias urbanas.
Dandara surge no primeiro ano do (des)Governo do Prefeito-empresário de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, que por todas as vias buscou deslegitimar e despejar a ocupação, mas foi derrotado em suas pretensões. Na gestão empresarial da cidade de Belo Horizonte, Lacerda (2009-2016), a comunidade travou várias lutas importantes e formou uma grande rede de apoio: participou ativamente do movimento Fora Lacerda, realizou cinco Grandes Marchas percorrendo a pé mais de 25 km até o centro de BH, ocupou o prédio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana (SEDRU), acampou 5 semanas na luta contra despejo: 3 semanas na porta da prefeitura de BH, uma na Praça 7 e outra semana na porta da Regional da Prefeitura no Barreiro, ocupou juntamente com outras ocupações urbanas a sede da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) nos influxos das Jornadas de Junho de 2013, realizou uma campanha internacional contra o despejo, recebeu um grande abraço solidário, dentre outras várias ações. A luta de Dandara sempre reivindicou que fosse reconhecido o abandono e a perda da propriedade especulativa da Construtora Modelo sobre a terra e o direito de permanência e regularização fundiária da comunidade, de forma construída com os moradores e movimentos sociais.
Contudo, para indignação nossa, aconteceu que à surdina, sem alarde, na calada dos jogos palacianos, o governador Fernando Pimentel (PT) editou o Decreto Estadual 196, de 20 de abril 2016, declarando o interesse social para fins de desapropriação da área. Com base no Decreto, em junho de 2016, ajuizou uma ação de desapropriação (n. 5087851-24.2016.8.13.0024) em face da Construtora Modelo. Na ação, não puderam participar os advogados populares da comunidade e até mesmo a Defensoria Pública de Minas teve a sua participação negada. Dessa forma, o Governo propôs pagar R$ 51.012.168,34 (cinquenta e um milhões, doze mil, cento e sessenta e oito reais e trinta e quatro centavos) pela terra, o que foi aceito pela construtora Modelo. Foi noticiado pela mídia que na última segunda-feira, dia 16 de novembro de 2020, o juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte, Elton Pupo Nogueira – o mesmo juiz dos processos da mineradora Vale no crime em Brumadinho -, homologou acordo que prevê o pagamento do valor mencionado. Ou seja, sem qualquer participação social, uma área que estava servindo à especulação imobiliária, abandonada há mais de 30 (trinta) anos, pela qual a Construtora Modelo não tinha pago nem um centavo, com mais de 2 milhões de reais em dívida de IPTU, em clara afronta ao princípio constitucional da função social da propriedade, irá gerar uma fortuna para os cofres de uma construtora! É a completa transgressão da responsabilidade do Poder Público já que uma empresa privada está se apropriando indevidamente da riqueza urbana produzida coletivamente em uma completa imiscuidade entre o público e o privado. Grande injustiça também é o fato de que a Ação Civil Pública da Defensoria Pública de Minas Gerais, que exige regularização fundiária e urbanização da Ocupação Dandara e teve liminar concedida pelo então juiz Manoel dos Reis Moraes, da 6ª Vara de Fazenda Pública Estadual, até hoje não teve julgamento de mérito, o que poderia decidir em sentido contrário ao acordo homologado pelo juiz Helton dia 16/11/2020. Não é justa a homologação desse Acordo que premia a especulação imobiliária e abona conluio do Estado com o grande poder econômico antes do julgamento do mérito da ACP que tem a Comunidade Dandara como autora.
A Ocupação Dandara e os movimentos sociais sempre reivindicaram que o Poder Público e o Judiciário reconhecessem que a construtora Modelo jamais comprovou a posse sobre a área e que perdeu sua suposta propriedade pelo abandono e descumprimento da função social. A desapropriação até poderia ser uma das formas de declarar a perda da propriedade da Construtora e de garantir a regularização fundiária da comunidade. Contudo, repudiamos a forma como foi feita, uma vez que não foi construída com a comunidade e os movimentos sociais. Ainda, a Constituição Federal exige o cumprimento da função social da propriedade e que, em caso de desapropriação, a indenização deve ser justa, ao mesmo tempo que o Estatuto da Cidade considera ilegal a especulação imobiliária e o Decreto Lei 3.365/41 dispõe que a indenização deve tomar por base a situação do imóvel, seu estado de conservação, sua situação fiscal e os interesses legítimos que dele aufere o proprietário. Ou seja, mesmo havendo indenização, esta jamais poderia ser estimada na ordem de mais de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) para uma propriedade especulativa, abandonada e descumpridora da função social.
O processo de desapropriação correu em uma relação paralela de diálogo entre a Construtora Modelo, Judiciário e Estado sem, em momento algum, envolver os moradores da comunidade Dandara e, pior, desconsiderando totalmente a existência de uma Ação Civil Pública (ACP), movida pela Defensoria Pública de MG, cujo um dos requerimentos, era a desapropriação. Isso poderia ser feito via ACP já existente, assegurando a participação da defensoria pública, procuradores/as da comunidade e os moradores, mas não, sem diálogo e sem participação, acordou-se com a imprensa noticiando os fatos.
O absurdo é ainda mais evidente no atual contexto, onde a suposta crise fiscal é constantemente utilizada para negar direitos ao povo trabalhador e cortar em investimentos sociais, mas é ignorada quando se trata de premiar a propriedade especulativa com recursos públicos. A mesma gestão Pimentel propôs e aprovou a Lei estadual 22.606/2017, que cria e transfere para um fundo financeiro cerca de 6.000 imóveis Estaduais com o objetivo de administrá-los a partir da lógica mercantil do lucro e da especulação imobiliária. Também seu sucessor, Romeu Zema, tem implementado um modelo de desestatização e financeirização da terra, que fica expresso pela constituição de um Fundo de Investimento Imobiliário que será constituído por mais de 2.100 imóveis da Companhia de Habitação de Minas Gerais (COHAB), totalizando aproximadamente R$ 350 milhões.
As vitórias da ocupação Dandara são frutos da luta organizada pelo direito à moradia e à cidade e inspiraram muitas outras ocupações, como Irmã Dorothy, Helena Greco, Rosa Leão, Esperança, Vitória, Guarani Kaiowá, Eliana Silva, Nelson Mandela, Paulo Freire, Tomás Balduíno, Novo Horizonte, Lampião, Candeeiro e tantas outras comunidades. Dandara se construiu como um dos maiores paradigmas de consolidação do direito à moradia e à cidade ao afirmar a autonomia do poder popular que constrói novas geografias, novas formas políticas e um novo projeto de cidade livre das amarras da opressão!
A luta das ocupações sempre levantou que “enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito e um dever” e, nos últimos 13 anos, as ocupações em Belo Horizonte construíram mais de 30.000 (trinta mil) moradias onde vivem mais de 100.000 (cem mil) pessoas, enquanto o Poder Público demoliu milhares de moradias e produziu apenas cerca de 18.000 moradias nos últimos 20 anos, o que demostra a força da luta direta para garantia de direitos. Se a luta organizada vale mais que ouro em pó, a propriedade especulativa, não.
Viva a luta popular! Viva Dandara!
Por uma cidade onde caibam muitas cidades!
Pátria-Mátria Livre – Venceremos!
Belo Horizonte, 18 de novembro de 2020.
Assinam essa Nota:
Brigadas Populares – Minas Gerais
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Rede de Apoio e Solidariedade da Comunidade Dandara