DEFENSORIA PÚBLICA DE MG RECOMENDA VETO AO PL 142, EM BELO HORIZONTE, POR FALTA DE CONSULTA PRÉVIA INFORMADA E POR INCONSTITUCIONALIDADE

DEFENSORIA PÚBLICA DE MG RECOMENDA VETO AO PL 142, EM BELO HORIZONTE, POR FALTA DE CONSULTA PRÉVIA INFORMADA E POR INCONSTITUCIONALIDADE: “Não é constitucional proibir o Trabalho de 10.000 carroceiros/as em BH”.

Ofício 001/2021 DPDH/DPMG       Belo Horizonte, 13 de janeiro de 2021.

Exmo. Senhor Alexandre Kalil

Prefeito do Município de Belo Horizonte/MG Exmo. Sr. Castellar Modesto Guimarães Filho Procurador-Geral do Município

Av.       Afonso      Pena,        1212       |         4°        Andar       |             BH/MG via email: gepex@pbh.gov.br e gabpref@pbh.gov.br

Assunto: envia recomendação

Prazo de resposta: 5 (cinco)dias úteis

Senhor Prefeito,

Senhor Procurador-Geral,

A DEFENSORIA PÚBLICA ESPECIALIZADA EM DIREITOS HUMANOS, COLETIVOS

E SOCIOAMBIENTAIS, órgão especializado da DEFENSORIA DE MINAS GERAIS, por meio da defensora pública abaixo subscrita, no uso das suas funções constitucionais, tendo em vista o encaminhamento pela Câmara Municipal de Belo Horizonte ao gabinete de V.Exa., no dia 31/12/2020 da Proposição de Lei 98/20 oriunda do PL 142/17, expede nos termos anexos, uma RECOMENDAÇÃO a Vossa Excelência, objetivando, com isso, que o próprio Poder Municipal por meio do veto, possa exercer seu poder de autocontrole da constitucionalidade. Nos termos do que será exposto na recomendação e parecer que o fundamenta anexos, o veto é a forma mais adequada de se evitar a utilização da via do controle concentrado e abstrato da constitucionalidade das leis e atos normativos perante o Tribunal de Justiça.

Mediante essas considerações, confiantes na interlocução entre as instituições públicas como meio de promoção da dignidade da pessoa humana e da garantia dos direitos constitucionalmente previstos e amparados, aguardamos providências desta Instituição no sentido das preocupações que são colocadas.

Por fim, aguardamos resposta, sobre as providências tomadas com as devidas justificativas, no prazo acima mencionado, podendo ser enviada pelos e-mails: direitoshumanos@defensoria.mg.def.br,                                                                                                               ou ana.alexandre@defensoria.mg.def.br.

Sem  mais,  aproveitamos para apresentar protestos de estima e consideração.

Atenciosamente,

ALEXANDRE STORCH:81189583615  

ANA CLAUDIA DA SILVA

Assinado de forma digital por ANA CLAUDIA DA

SILVA ALEXANDRE STORCH:81189583615 Dados: 2021.01.13 14:52:11 -03’00’

ANA CLÁUDIA DA SILVA ALEXANDRE STORCH DEFENSORA PÚBLICA – MADEP 112

Procedimento Administrativo- PACT n.º: 221/2018

Objeto: DIREITOS DOS CARROCEIROS DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE E

REGIÃO METROPOLITANA (Proposição de Lei 98/20 – oriundo do PL142/17). Espécie: Recomendação (que se expede)

Lei municipal que cria proibição para o exercício da atividade tradicional de carroceiro por meio da obrigatoriedade de substituição do transporte que utiliza equinos por motocicletas. Falta de consulta prévia, livre e informada. Inconstitucionalidade material.

CONSIDERANDO, que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 134 da CR/1988); e para tanto deverá promover, dentre outras, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios; e a defesa de povos e comunidades tradicionais, sob quaisquer circunstâncias, visando o exercício pleno destes direitos e garantias fundamentais ( artigo 4º, incisos II, VII e XVII da Lei Complementar nº 80/84);

CONSIDERANDO que, de acordo com a Convenção 169 da OIT, não devem ser empregadas nenhuma forma de força ou coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos e grupos tradicionais(artigo 3° item 2); medidas especiais necessárias deverão ser adotadas para salvaguardar as pessoas, instituições, bens, trabalho, culturas e meio ambiente desses povos, e que essas medidas especiais não deverão contrariar a vontade livremente

expressa desses povos e grupos tradicionais (artigo 4º itens 1 e 2); e ainda, que estes povos possuem direito a consulta prévia, livre e informada ( artigo 6º, a);

A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, por meio do seu órgão especializado em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais, expede a presente RECOMENDAÇÃO, tudo nos termos a seguir:

I – Considerações iniciais

A Defensoria Pública de Minas Gerais, por meio do seu órgão especializado em Direitos Humanos, coletivos e socioambientais, no âmbito do PACT nº 221/2018, promove a defesa dos direitos dos Carroceiros da Capital e Região Metropolitana

– grupo socialmente vulnerabilizado e que possui modos tradicionais de vida. Nesta qualidade em 08/04/2019 expediu por meio do ofício nº 139/2019 à Presidência da Câmara municipal de Belo Horizonte, uma requisição na qual apontou a inconstitucionalidade do PL 142/2017, requisitando a retirada do mesmo da pauta de votação para correção dos vícios. Apontou a Defensoria Pública naquela oportunidade a ausência de consulta pública livre, prévia e informada, por ser o grupo dos carroceiros da RMBH uma comunidade tradicional autodeclarada.

No entanto, apesar da retirada de pauta do procedimento naquela ocasião, o referido vício não foi corrigido, e sem a consulta o PL142/2017 foi aprovado e transformado na Proposição de Lei 98/2020, enviado ao Município em 31/12/2020, para sanção ou veto até o dia 21/01/2021. Segue o texto aprovado:

“PROPOSIÇÃO DE LEI N° 98/20

Dispõe sobre a criação do Programa de Substituição Gradativa dos Veículos de Tração Animal no Município e dá outras providências.

A Câmara Municipal de Belo Horizonte decreta:

Art. 1° – Fica instituído no Município o Programa de Substituição Gradativa de Veículos de Tração Animal, intitulado “Carreto do Bem”.

Art. 2° – O programa “Carreto do Bem” consiste na substituição dos veículos de tração animal por veículos de tração motorizada.

Parágrafo único – Para os efeitos desta lei, considera-se:

  1. – veículo de tração animal: meio de transporte de carga movido por tração animal;
  2. – veículo de tração motorizada: meio de transporte de carga adaptado de uma motocicleta acoplada a uma caçamba de baixo custo e de simples manutenção.

Art. 3° – O Programa “Carreto do Bem” também estabelecerá:

  1. – identificação e cadastramento social dos condutores de veículos de tração animal, no prazo de 1 (um) ano a partir da publicação desta lei;
  2. – cadastramento, verificação das condições de saúde e microchipagem dos animais utilizados nos veículos de tração animal, em conjunto com assinatura de termo de guarda responsável do seu condutor, no prazo máximo de 1 (um) ano a partir da data de publicação desta lei;
  3. – ações para viabilizar a capacitação dos condutores de veículos de tração animal a conduzirem veículos de tração motorizada;
  1. – transposição, através de políticas públicas, dos condutores de veículos de tração animal identificados e cadastrados para outros mercados de trabalho.

Art. 4° – Fica proibida a utilização de veículos de tração animal, em definitivo, no prazo de 10 (dez) anos, contados a partir da publicação desta lei.

§ 1° – O animal encontrado na situação vedada pelo caput deste artigo será retido pelo agente fiscalizador, que acionará o órgão municipal competente para realizar seu recolhimento.

§ 2° – O animal apreendido será encaminhado ao Centro de Controle de Zoonoses para verificação de suas condições de saúde, bem como para, seu alojamento até que seja levado à adoção.

Art. 5° – A desobediência ao disposto no art. 4° desta lei implicará a aplicação de multa em valor estabelecido por ato do Executivo.

Art. 6° – A execução do programa de que trata esta lei será realizada por ação conjunta da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, da Secretaria Municipal de Saúde, da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A – BHTrans – e da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte – GCMBH.

Art. 7° – O poder público poderá firmar convênio com instituições públicas e/ou privadas, visando à implementação dos preceitos desta lei.

Art. 8° – Fica autorizado o Município a complementar os recursos para a consecução e ampliação dos objetivos desta lei por meio de dotações orçamentárias próprias.

Art. 9° – Revogam-se as disposições em contrário.

Art. 10 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Belo Horizonte, 31 de dezembro de 2020.”

O texto legislativo aprovado fere a constituição federal no que tange a garantia e preservação dos modos tradicionais de criar, fazer e viver (art. 216, II da CR). Acrescento que há implícita na proposta, inclusive, discriminação étnico racial, considerando que grande parte dos carroceiros da RMBH são ciganos, e que este também é um modo tradicional de viver do referido grupo, que também possui direito à proteção à sua diversidade e cultura. Nem os carroceiros, nem os ciganos foram consultados nos termos previstos na convenção 169 da OIT.

A atividade já havia sido regulamentada pelo Município de Belo Horizonte, por meio das normas municipais – Lei 10.119/2016 e Decreto 16.270/2016, portanto, não é uma atividade irregular. Pelo contrário, vem contribuindo de forma ambientalmente saudável para a vida urbana deste município. A proibição da atividade, portanto, contida na proposição legislativa aprovada sem a participação e consulta deste grupo vulnerabilizado se reveste de clara medida discriminatória e desrespeita os direitos destes seres humanos. A Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho promulgada no Brasil por meio do Decreto n°, 5.051, de19/04/2004, estabelece em seu art 3° que é dever do Estado garantir que não seja empregada nenhuma forma de força ou coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais de grupos cujas condições sociais econômicas e culturais os distingam de outros setores da coletividade nacional. O Decreto n°6.040,de 07/02/1997 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais que tem como princípio o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade, e, também é uma Lei federal que ampara os direitos dos carroceiros. Por sua vez, nos Estado de Minas Gerais, está em vigor a Lei Estadual 21.147/14, que criou a política Estadual e não pode ser desconsiderada, acarretando em conjunto com as demais normas o vício de inconstitucionalidade que aqui está sendo apontado.

II – Contextualização do conflito ambiental: a disputa territorial e econômica na cidade de Belo Horizonte – razões que orientam ao veto da proposição legislativa 98/20

Os professores Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira e Emmanuel Duarte Almada, desenvolveram um trabalho acadêmico que narra o acompanhamento da luta dos carroceiros da RMBH, já há muito tempo em disputa territorial na cidade de Belo Horizonte. Já no preâmbulo, deste projeto de pesquisa1 descreveram da seguinte forma a situação dos carroceiros da RMBH:

“Os carroceiros de Belo Horizonte trabalham, majoritariamente, como parceiros da Limpeza Urbana e agentes de Educação Ambiental (REZENDE et al, 2004). Sua inserção contemporânea como atores urbanos relevantes se transformou em 1993 a partir do reconhecimento dessa classe de trabalhadores como parceiros pela Superintendência de Limpeza Urbana da prefeitura (LOPES, 2013;  OLIVEIRA,  2017;  SEM  AUTOR,  2000).  O  poder  público

implementou uma série de medidas em torno do “Programa de Correção Ambiental e Reciclagem com Carroceiros”, iniciado quatro anos mais tarde. Tais medidas visaram a organização dos carroceiros, a melhoria da renda e das condições de trabalho, os

1 Para além dos currais: trabalho, saberes e fazeres da cultura carroceira em Belo Horizonte – projeto de pesquisa de Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira, Emmanuel Duarte Almada. Cópia arquivada no PACT 221/2018, pg.06/08

cuidados médico veterinários aos cavalos, bem como a promoção do reconhecimento socioambiental do trabalho. Desde então, a atuação do poder público orienta-se nas frentes Social, Veterinária e Técnica, com o objetivo de garantir a vacinação e o controle parasitológico dos animais, assim como promover palestras e cursos aos carroceiros urbanos (ALMEIDA, 2003; REZENDE et al, 2004).

Recentemente, os carroceiros e seu modo de vida e trabalho têm sido objeto de intenso debate político, especialmente em decorrência da atuação de movimentos em defesa dos direitos dos animais. Existem alguns Projetos de Lei em tramitação na Câmara Municipal de BH, notadamente PL 142/2017 e PL 154/20172, de autoria do vereador Osvaldo Lopes (PHS), que têm como objetivo a proibição da tração animal e a substituição dos cavalos por propulsão motorizada. Os autores dos projetos, de forma geral, desconhecem as complexas dimensões do mundo do trabalho dos carroceiros, e, por consequência, de seus modos de produzir a cidade. O trabalho dos carroceiros encontra-se, pois, ameaçado por projetos que tendem a desconsiderar e deslegitimar a diversidade de modos de vida e de apropriação do espaço urbano. Percebe-se ainda uma escassez de pesquisas voltadas para a compreensão das diversas dimensões do ofício e da cultura carroceira (LOPES, 2013; Oliveira 2017).”

Conforme acima já narrado O PL 142/2017 foi aprovado no final do ano passado e se transformou na proposição legislativa 98/20, que é objeto da presente recomendação.

2 Ambos os projetos de lei reformulam praticamente o mesmo conteúdo expresso no PL 832/2013, de autoria do então vereador Adriano Ventura (PT), que foi retirado de tramitação após intensas manifestações de repúdio frente aos intentos de proibição, culminando em sucessivas audiências públicas para discussão do destino de carroceiros e cavalos que trabalham em BH.

A Professora Maria Stella Neves Pereira, Geógrafa, e professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG, foi uma das pioneiras na defesa da inclusão social dos carroceiros na Cidade de Belo Horizonte. Ela Participou do Programa de Correção Ambiental e Reciclagem com Carroceiros de Belo Horizonte, iniciado em 1997, resultante de uma parceria entre a UFMG e a SLU. Por meio desta atuação desde esta época existem as URVPs na cidade e um modo de vida integrado com políticas públicas de reciclagem do lixo e cultura ambientalmente saudável. Já existe idealizado um modo de vida que contempla, inclusive, a proteção à saúde animal. Numa entrevista3 sobre a construção desta política pública de inclusão social a professora comenta a importância ambiental desta relação entre a carroça e o meio urbano:

“Primeiro foi a carroça, a “reciclagem” de carroceiros e as Charretes na Lagoa. Mas todo mundo implicava com a gente, “Que negócio de carroça é esse?”.E depois teve aquela notícia: “França adota carroças contra o aquecimento global”. Então pensei: “Mas, não é só nós não, viu?” (risos)

A renomada professora se refere à notícia4 veiculada na mídia e que se refere a cidades francesas que incentivam o uso de carroças para proteger o meio ambiente. Esta visão ambiental ainda é parâmetro até os dias atuais e expõe a contradição presente neste conflito ambiental onde várias disputas do meio ambiente urbano, dentre elas as econômicas como a das empresas de caçambas; são utilizadas para sustentar práticas higienistas e racistas, em

3 Entrevista realizada no dia 05/04/2017, às 09:00 horas, no Gabinete PROEX-UFMG. Entrevistadora: Professora Claudia Mayorga. Equipe participante: Gabriela Braga Casali, Cecília Cotinguiba da Silva e Raíssa Gabriella Lopes.Disponível em: https://www.ufmg.br/cevex/entrevistas/professora-maria-stella-neves-pereira/ acesso em 12/01/2021

4 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/bbc/reporter/2007/12/07/ult4909u1459.jhtm, acesso em 12/01/2021

detrimento do próprio ambiente ecológico em si mesmo e de modos de vida tradicionais.

De fato, no meio urbano, ainda há muito o que se enfrentar no que tange à emissão excessiva de poluentes e CO2, oriundos, principalmente do excessivo tráfego de veículos automotivos. E não é à toa que práticas tradicionais são consideradas ambientalmente saudáveis numa realidade urbana altamente prejudicial ao meio ambiente, tanto na excessiva e inadequada alocação do seu lixo, como no excessivo tráfego de veículo automotivo que desgasta ainda mais a já desgastada camada de ozônio da nossa atmosfera, implicando em aumento do aquecimento global e risco real à vida humana no planeta terra, em curtíssimo espaço de tempo.

São muitas variáveis que podem e devem ser consideradas quando se analisa uma possível retirada de uma atividade tradicional de um meio ambiente urbano. A primeira delas é que isto somente poderia ser possível com a participação de todos os envolvidos. Daí a razão de ser do direito a consulta livre, prévia e informada. Algo semelhante já ocorreu em determinados territórios, mas, o que se viu foi uma prática inclusiva e de melhora efetiva para o meio ambiente de todos os atores envolvidos. Um destes exemplos é o caso do Parque Nacional de Cabo Pulmo5 criado a partir da vivencia de uma comunidade tradicional com o receio de se extinguir com a degradação crescente do meio ambiente que a cercava. Nesta pequena aldeia de pescadores a degradação do seu ambiente aquático chegou a tal ponto, que a comunidade tradicional de pescadores passou a vivenciar dificuldades econômicas pela diminuição do material que garantia a sua sobrevivência: a pesca. A situação provocou a união da comunidade que decidiu pela reconstrução do seu ambiente aquático, mas, também numa mudança do seu estilo de vida. O meio de subsistência da comunidade a pesca foi abandonado

5   EM  DEFENSA     DE      CABO   PULMO.  Greenpeace    Mexico.     2011.              Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=soV60p3XTiY

e hoje o que garante renda à população local é o turismo sustentável. A comunidade uniu esforços para promover a proteção máxima do seu ambiente aquático transformando-se, dez anos depois, num dos maiores santuários aquáticos do planeta. No entanto, os registros demonstram que esta não foi uma decisão verticalizada. Ao contrário, foi construída de forma horizontal entre todos os interessados e membros da comunidade tradicional.

A solução de um conflito ambiental, ou em outras palavras a busca por uma justiça ambiental, não pode excluir do meio ambiente as suas relações sociais. As comunidades tradicionais e seus modos protegidos de criar, fazer e viver devem ser vistos como aliados no processo de proteção do meio-ambiente. A visão sistêmica que se busca para alcance da justiça ambiental concilia os interesses de proteção das diversas espécies: fauna, flora e comunidades tradicionais- ou seja, a diversidade ecológica e cultural de uma forma geral.

Nesse sentido Zhouri (2005) destaca que para construção de uma justiça ambiental é necessária:

Valorização das alteridades culturais disseminadas por entre as várias camadas sociais, assim, como a compreensão das dinâmicas de poder existentes entre elas. A heterogeneidade cultural de nossa sociedade contrapõe-se à forma homogeneizante de intervenção na natureza, expressando propostas de sustentabilidades plurais – múltiplas possibilidades de viver, que se refletem na diversificação do espaço e inspiram uma visão de sustentabilidade que deve necessariamente articular as dimensões da equidade, da igualdade, da distribuição, assim como da universalidade do direito de viver na singularidade.6

Uma visão não antropocêntrica, inclui os seres da natureza, e na natureza os próprios seres humanos, pois, não há como decidir neste contexto

6 ZHOURI, Andréa. A insustentável leveza da política ambiental – desenvolvimento e conflitos socioambientais/ organizado por Andréa Zhouri, Klemens Laschefski, Doralice Barros Pereira – Belo horizonte: Autêntica, 2005.

ambientalmente criado e vivenciado por todos – que apenas um ou determinados grupos são os responsáveis pelo malefício ambiental vivenciado por todos. A definição implícita na chamada “causa animal” de que são os carroceiros os responsáveis por maus tratos aos animais, desconsidera as questões culturais que do ponto de vista ambiental deslocam a verdadeira causa do conflito – a disputa política por território e produção econômica nas cidades e perpetua uma visão antropocêntrica de ambiente, que sempre vai excluir os mais fragilizados como “ambientalmente nocivos”. Não é à toa que a causa elege como seu objeto de preferência os equinos, deixando à deriva vários dos seus semelhantes que ainda não possuem na cidade espaços de abrigo e sofrem diuturnamente maus tratos inclusive, dos próprios defensores da “causa animal”, revelando uma enorme contradição.

Portanto, não é possível se modificar uma realidade ambiental, que inclua modos tradicionais de vida e seres humanos, desta forma vertical, autoritária, racista, higienista e excludente, como a que está sendo imposta aos carroceiros na proposição legislativa 98/20.

Do ponto de vista jurídico, a inclusão dos seres humanos na natureza, e a busca por uma sadia qualidade de vida, conforme está inserido no caput do art. 225 da Constituição Federal, preservando a existência das futuras gerações deve observar, de forma extensiva e não restritiva, o inciso VII do art. 225, combinando-o com o art. 216, II da CR e os dispositivos da convenção 169 da OIT. É ainda necessária a inclusão ambiental/territorial dos povos e comunidade tradicionais, e respeito aos seus direitos de consulta livre, prévia e informada, conforme prevê a também constitucional convenção 169 da OIT.

Para aqueles que consideram crueldade a exposição de um animal ao trabalho, devem estar dispostos a discutir com toda a sociedade a exposição de animais em feiras e como objeto de reprodução/mercadoria, ou ainda, para consumo como alimentação humana. O enfoque da questão de forma reduzida, e voltada para grupos sociais vulnerabilizados, detentores de modos de fazer, criar e viver

tradicionais, sem admitir a participação destes na discussão, em desrespeito ao seu direito de consulta previsto na convenção 169 da OIT, é tratamento desigual, e além de maus tratos, devem ser consideradas medidas higienistas e racistas.

No texto intitulado: “Eles podem acabar com a carroça, mas não vai ser do jeito que eles quer não”: conflitos e resistências no cotidiano dos trabalhadores que utilizam veículos de tração animal” o autor Pedro Jardel Fonseca Pereira7 comenta que:

“O historiador Eduardo Antunes Medeiros ressalta que muitas dessas profissões exercidas nas ruas, como catadores de materiais recicláveis, carroceiros, ambulantes, camelôs, lavadores de carros, acabam sendo acusadas de interferir na paisagem urbana, enfeiando-a, sujando-a e atrapalhando o trânsito. Esses trabalhadores passam a ser vistos de maneira negativa pela população, motivada por uma visão que é criada e sustentada tanto pelos veículos de comunicação, como por grupos economicamente dominantes (Medeiros, 2002).Nesse sentido, enfatizamos que um dos objetivos desse tipo de política é a segregação espacial, ocorrida devido ao movimento de separação das classes sociais no espaço urbano (Rolnik, 1995). Em Montes Claros, percebemos que uma das heranças desse período é a percepção excludente de determinados grupos e indivíduos, sobretudo os trabalhadores informais, como os carroceiros. O que, além de manter um “[…] crescente contingente de trabalhadores em condições precarizadas […]” (Antunes, 2005, p. 15), “[…] está voltada prioritariamente […] para a produção de

7 Pereira, Pedro Jardel Fonseca – “Eles podem acabar com a carroça, mas não vai ser do jeito que eles quer não”: conflitos e resistências no cotidiano dos trabalhadores que utilizam veículos de tração animal” inHistória Oral, v. 22, n. 1, p. 217-240, jan./jun. 2019

mercadorias e para a valorização do capital” (Antunes, 2005, p.

15).”

Nesta obra, a situação de maus tratos aos carroceiros pela população das cidades é também evidenciada:

“O simples fato de os carroceiros passarem pela rua já faz com que sofram ofensas, sobretudo por parte daqueles que acreditam que esse ofício é incompatível com a realidade urbana. Essa percepção foi confirmada também no depoimento do sr. Gelson Guimarães, quando o inquirimos sobre como a população trata o carroceiro: “Tem gente que maltrata, teve um dia que tava passando, eu ouvi uma dona falando: ‘Ah esse negócio de carroça tem que acabar, faz é sujeira na rua! Tem uns que faz descaso né, o carroceiro tipo não vale nada’” (Gelson Guimarães, 2017). O espaço urbano, nesse sentido, pode representar a oportunidade de realizar uma atividade remunerada que garanta a sua sobrevivência, mas também o torna propício à exposição a situações de constrangimento.”

Os já citados professores Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira Emmanuel Duarte Almada8, acrescentam a esta situação de descaso com os carroceiros, esforçando a ideia de exclusão social:

“A demanda pela extinção das carroças, no modo como é conduzida em Belo Horizonte e Região Metropolitana, implica duas consequências sociais: a primeira é a definição dos carroceiros não como cidadãos, mas sim como bárbaros incivilizados, cuja condição de sujeito racional com capacidade de internalizar e respeitar regras é negada; a segunda é o movimento que almeja ao rompimento forçado das relações entre esses

8 Oliveira, Ricardo Alexandre Pereira e Almada, Emmanuel Duarte – “Dos sentidos da carroça: cavalos urbanos em disputa por carroceiros e por empreendedores da libertação animal” – in Anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia ISSN: 2358-5684 – VII REACT – maio de 2019 – UFSC/SC

humanos com esses animais de tração, visando a doação destes a instituições que, de acordo com a crença dos defensores, necessariamente promoveriam uma vida “mais feliz” e “sem sofrimento”.

E não é só, a diminuição/anulação da cidadania dos carroceiros se acentua na discriminação utilizada para reforçar os argumentos da disputa de forma preconceituosa e hostil:

“Nessa e em outras situações de debate ao longo dos últimos anos, a perspectiva da “libertação animal”, tem sucumbido a uma irredutível coisificação dos carroceiros enquanto objetos de políticas públicas de descarroceirização da cidade, sem consulta efetiva e menos ainda consentimento dos afetados pela hipotética proibição. As propostas de “mudança de emprego” são consideradas ofensivas pelos trabalhadores, pois desconsideram a compreensão dos próprios carroceiros e seus cavalos sobre a atividade que realizam. A socialidade carroceira implica relações inter-classes, inter-raciais, interétnicas e inter-regionais. Se, por um lado, eles costumam morar em regiões relativamente periféricas, por outro lado a contratação do serviço propriamente dito é feita na maior parte das vezes por fregueses da classe média, que demandam o transporte de resíduos de podas de árvore e reformas feitas dentro de suas propriedades. Embora não constituam uma coletividade espacialmente delimitada, os carroceiros desempenham um papel estruturante na vida de comunidades de BH e região metropolitana.

Como já dissemos, há desrespeito a direitos constitucionais destes detentores de um modo tradicional de vida. Mas não é só isto, há um ganho econômico com esta exclusão e privilégio de um grupo social em relação a outros nesta disputa,

o que por si só é nocivo do ponto de vista ambiental. Portanto, não é o meio ambiente equilibrado que “ganha” neste processo de exclusão social. Os professores Ricardo e Emmanuel no citado texto9, e ao acompanhar o dia-a-dia dos carroceiros na região metropolitana de Belo Horizonte, nos conseguem dar do ponto de vista deles o que é o meio ambiente urbano da capital:

“Temos a intenção de acrescentar ao debate algumas considerações acerca do conflito ambiental que opôs defensores dos direitos dos animais aos carroceiros dessa cidade, descrevendo o ponto de vista desses trabalhadores acerca da atividade que realizam junto aos animais de tração. A mudança que eles almejam, e reivindicam incisivamente, aponta para a ampliação do reconhecimento da legitimidade do modo de vida carroceiro e, ao mesmo tempo, a reformulação das normas que regulam a circulação de carroças na cidade.(…)É junto aos cavalos e mulas, seus companheiros de trabalho, que eles constroem o território carroceiro na cidade ao longo de rotas tradicionais e através dos saberes e fazeres envolvidos nesse modo de viver na cidade. O trabalho realizado conjuntamente se baseia no atendimento aos desejos e limites dos animais de tração, apesar de ter o objetivo explícito de gerar a renda necessária para a reprodução social das famílias. Em resumo, as campanhas de criminalização e a proposição de projetos de lei se retroalimentaram mutuamente por meio das demandas pelo uso da violência estatal contra carroceiros, ao mesmo tempo em que os excluiu da participação como sujeitos implicados no debate sobre os direitos dos animais.(…)Os carroceiros e seus aliados não negam a existência de eventuais casos de maus tratos, e defendem que para esses casos específicos a fiscalização aja de

modo a viabilizar punições adequadamente voltadas à proteção dos animais. O caminho para a supressão de situações que provoquem sofrimentos aos animais, de acordo com o que têm reivindicado na luta, é a articulação de políticas públicas que reconheçam todos como sujeitos, sejam humanos ou animais.”

Por fim, a Defensoria Pública aguarda o veto integral a este projeto de lei, o que faz com base em tudo o que acima foi exposto, e, ainda, no necessário respeito à diversidade cultural que este Município deve primar na execução das suas políticas públicas. A exclusão social do modo de vida tradicional dos carroceiros jamais se constituirá como um modo de vida ambientalmente saudável, pelo contrário:

“Ao afirmar que “a cidade é nossa roça”, os carroceiros invertem e denunciam o discurso colonizador que pretende apagar a diversidade biocultural dos espaços urbanos em nome de um suposto progresso excludente e violento. Ser “da roça” significa reafirmar a possibilidade, e mesmo a imprescindibilidade, da vida em comum entre humanos, animais e plantas, que se tece nas andarilhagens das carroças pela cidade.”10

III– Conclusão

Face ao exposto a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS,

RECOMENDA ao Município de Belo horizonte:

  1. Veto integral a proposição legislativa 98/20, com base nos vícios de constitucionalidade acima apontados;
  • Criação de uma câmara técnica de diálogo e participação social que minimize o conflito ambiental entre carroceiros e defensores dos direitos dos animais e indique medidas necessárias para fiscalização dos maus tratos aos equinos e melhoria das condições sociais dos carroceiros, incluindo a Defensoria Pública nas referidas reuniões.

Atenciosamente,

ANA CLAUDIA DA SILVA ALEXANDRE STORCH:81189583615

Assinado de forma digital por ANA CLAUDIA DA SILVA ALEXANDRE STORCH:81189583615

Dados: 2021.01.13 14:53:11 -03’00’

Ana Cláudia da Silva Alexandre Storch Defensora Pública – Madep 112

Obs.: Segue, abaixo, a RECOMENDAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DE MG recomendando que o Prefeito de Belo Horizonte, MG, vete o PL 142/17, pois é proposta de lei racista, autoritária, inconstitucional, higienista, colonialista, viola a Convenção 169 da OIT da ONU e imporá fome e miséria a milhares de famílias carroceiras e ciganas.