Do sindicalismo combativo à luta pela terra em Campo do Meio, MG.

Do sindicalismo combativo à luta pela terra em Campo do Meio, MG. Por Gilvander Moreira[1]

Foto reprodução do site do Mandato do Dep. Rogério Correia.

Até a década de 1980, milhares de trabalhadores boias-frias do Nordeste, do norte de Minas ou do Vale do Jequitinhonha, regiões de clima muito quente, vinham e ainda vêm para o sul de Minas Gerais para trabalhar nas lavouras de café. No sul de Minas, região de clima frio, esses trabalhadores tinham que trabalhar por quase nada, dormir no chão frio em condições insalubres e sobreviver com alimentação escassa. Em situações análogas à escravidão, muitos adoeciam. Assim, muitos boias-frias começaram a procurar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) que atuava nas fazendas – onde eram procurados – combatendo o trabalho escravo. No ano seguinte, na próxima colheita, os trabalhadores voltavam para outra fazenda e, assim, a prática se repetia. E, dessa forma, “todo ano, durante a colheita do café, o Sindicato tinha que combater o trabalho escravo na região”, recorda Sebastião Mélia Marques, hoje, assentado no P.A Primeiro do Sul, em Campo do Meio, MG.

Importante também resgatar a origem e a afirmação do sindicalismo combativo no sul de Minas, que surgiu a partir de 1986, como cisão da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG), quando, aliás, aconteceu a Campanha da Fraternidade sobre “Terra de Deus, terra de irmãos”, conforme relata Sebastião Mélia. “Havia 48 sindicatos de trabalhadores rurais no sul de Minas, todos ligados à FETAEMG. A partir de 1986, 15 sindicatos começaram a discordar e a questionar o trabalho da FETAEMG. A partir de 1990, o trabalho escravo se intensificou em todas as fazendas de café aqui no sul de Minas. Esses 15 sindicatos aderiram à luta contra o trabalho escravo e passamos a denunciar a existência de trabalho escravo na região. Perto da cidade de Alfenas, encontramos em 1996, em uma única fazenda, 2 mil trabalhadores escravizados. A colheita do café era toda à mão, não tinha maquinário ainda. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) era combativa e nos apoiava. O povo que vinha de regiões quentes, como o norte de Minas e o Vale do Jequitinhonha, adoecia todos aqui com o frio do sul de Minas. Os trabalhadores terminavam a colheita doentes na hora de voltar para suas famílias. Fomos denunciando até o Ministério Público do Trabalho começar a intervir e os fazendeiros tiveram que assinar um termo se comprometendo em melhorar as condições de trabalho, senão poderiam ser presos. Ainda existe o trabalho escravo atualmente, mas não como era na década de 1990. A luta pela terra e pela Reforma Agrária no sul de Minas nasceu da luta contra o trabalho escravo. Os camponeses acampados no latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, no sul de Minas, são quase todos imigrantes. Mesmo os que vieram do estado de São Paulo nasceram quase todos fora de São Paulo. Vimos que era muito melhor o trabalhador conquistar a terra do que todo ano ficar migrando em busca de emprego nas fazendas de café. A Usina Ariadnópolis também foi forjada com trabalho escravo. Temos uma cultura de trabalho escravo há vários séculos aqui no sul de Minas”, diz Sebastião Mélia Marques, resgatando a história de luta por direitos no sul de Minas.

Eis que, em 2 de outubro de 1995, os trabalhadores boias-frias da usina Ariadnópolis iniciaram a terceira greve que durou cerca de 100 dias. O STR da região apoiou a luta de três mil trabalhadores cortadores de cana na usina e propôs que a massa falida da ex-usina repassasse a terra como pagamento pelas volumosas dívidas fiscais e trabalhistas que eles tinham para receber da empresa. Em maio de 2009, a CAPIA, que é a massa falida da usina Ariadnópolis, devia mais de 300 milhões de reais em dívidas fiscais e trabalhistas (Fonte: Processo judicial). Entretanto, os trabalhadores queriam dinheiro e não aceitaram a proposta. Em várias reuniões dos trabalhadores rurais para discernir o quê e como fazer para resgatar os direitos dos trabalhadores lesados, surgiu a ideia que o STR deveria ocupar a Fazenda Jatobá – fazenda ao lado do latifúndio da Ariadnópolis, de propriedade de Manuel Alves, que tinha outras fazendas no município de Campo do Meio -, que, com a crise do café na década de 1980, veio à falência, após cultivar grande plantação de batata, de café e mexer com suinocultura. A fazenda Jatobá estava largada, ociosa e abandonada, sem cumprir sua função social, há mais de dez anos. Sindicalistas do STR a visitaram e avaliaram as possibilidades. Mas os trabalhadores rurais filiados ao STR da região não tinham conhecimento sobre como fazer a luta pela terra ocupando fazenda para pressionar por reforma agrária. Alguém do Sindicato dos bancários sugeriu que os trabalhadores rurais do STR entrassem em contato com militantes do MST. Feito o contato, um militante do MST da região do Rio Doce, de Governador Valadares, MG, foi enviado para lá, no início de 1996: um Sem Terra já experiente na organização dos camponeses sem-terra, como fazer trabalho de base, como ocupar a terra e como iniciar a produção, além de ser um exímio tocador de violão e cantador de músicas que animam a luta pela terra.

Vendo que estavam ‘enxugando gelo’ diante da força da cafeicultura na região, os trabalhadores do STR da região, com o apoio de um militante do MST, iniciaram um trabalho de base que buscava convencer os trabalhadores camponeses imigrantes que seria melhor para eles lutarem por um pedaço de terra do que ficarem sendo explorados a vida toda trabalhando como boia-fria. Assim, na madrugada de 18 de novembro de 1996, um domingo, em vários ônibus, por volta das três horas da madrugada, sete meses após o histórico massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, 80 famílias camponesas – a maioria delas imigrantes que vinham todos os anos trabalhar como boias-frias na colheita do café – ocuparam a antiga Fazenda Jatobá. Lá encontraram uma agrovila abandonada, rastro do regime de colonato adotado no início do século XX: 40 casas de alvenaria que estavam abrigando aranha, ratos, poeira, mosquito e cobras venenosas, inclusive. Muitas casas nem telhado tinham. Foi aí nessas casas abandonadas que iniciou o primeiro acampamento do MST no sul de Minas. Não começou com barracas de lona preta, diferentemente da quase totalidade das outras ocupações no campo. Poucas famílias sem-terra eram do município, pois “o povo da região era ainda muito submisso aos fazendeiros da plantação de café e da pecuária. Temiam se juntar na luta pela terra, porque, se depois, viessem a precisar de emprego, seriam rejeitados por terem se metido em ocupação de terra, coisa que era um tabu na época”, nos informa Sebastião Mélia Marques. Esse medo de aderir à luta pela terra é encontrado em todos os municípios no início da luta pela terra. Eis um sinal de que relações de dominação, de forma disfarçada, imperavam e inibiam o engajamento dos trabalhadores camponeses na luta pela terra e pela reforma agrária.

No dia seguinte, três policiais militares à paisana, disfarçados, foram ao Acampamento Primeiro do Sul, mas alguém da cidade os reconheceu. A Comissão de Segurança agiu rapidamente e convidou-os a deixar o acampamento antes que houvesse conflito. Alguns dias após, alguns policiais militares voltaram e fizeram um Boletim de Ocorrência anotando todos os bens que havia na fazenda. Quando as famílias sem-terra chegaram para ocupar a fazenda abandonada, as estradas não existiam mais. Só trilhos para caminhar ou andar a cavalo. “Após matar várias cobras dentro das casas abandonadas, começamos a limpar e a reconstruir as casas. Vários postes de energia tinham caído e nós os levantamos. O sistema de água encanada também teve que ser todo reformado”, recorda Sebastião Mélia Marques.

O Governo Federal estava sob o impacto do massacre de Eldorado dos Carajás, que tinha arranhado a imagem do Brasil com repercussão internacional negativa. Era preciso mostrar que o Governo tinha compromisso com a realização da reforma agrária. “O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) naquela época ainda funcionava. Hoje não funciona, é um escritório que recebe documentos e os engaveta. Mas o Governo estava preocupado com os conflitos agrários, porque tinha acontecido o massacre de Eldorado dos Carajás, dia 17 de abril de 1996. Nesse contexto, o INCRA de Minas Gerais procurou o fazendeiro que estava endividado – devendo mais de dois milhões de reais – e com a terra penhorada pelo banco. Assim, em negociação rápida, o INCRA comprou a fazenda Jatobá por três milhões de reais e cedeu a terra para usufruto das famílias acampadas”, conta Sebastião Mélia Marques.

Após toda essa história de luta pela terra e por direitos, o juiz substituto da Vara Agrária de Minas Gerais, Walter Zwicker Esbaille Júnior, dia 7 de novembro último (2018), determinou o despejo das 475 famílias que ocupam há 20 anos o latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, onde estão em 11 Acampamentos integrando o Quilombo Campo Grande e gerando emprego e renda para 80% a mais de trabalhadores que empresário vizinho João Faria, maior produtor individual de Café da América Latina. O MST está recorrendo judicialmente. As quase 500 famílias estão determinadas a não aceitar um 7º despejo e conta com o apoio da sociedade local e de uma Grande Rede de Apoio para salvar o Quilombo Campo Grande.

Belo Horizonte, MG, 19/11/2018.

Obs.: Os vídeos, abaixo, demonstram o escrito acima.

1 – Quilombo Campo Grande – Campo do Meio/MG

2 – MST pede para CNJ analisar decisão de despejar mais de 400 famílias em Minas Gerais

3 – Liminar de despejo no sul de Minas acampamento Quilombo Campo Grande

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III