Esperar lutando: eis o caminho!

Esperar lutando: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira[1]

Legenda: Comunidades Tradicionais Geraizeiras do norte de MG na luta por Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa-fé, conforme prescreve a Convenção 169 da OIT da ONU, diante do megaprojeto de mineração da mineradora SAM – Sul Americana de Metais.

A pedra de toque da pedagogia da luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos humanos fundamentais é o diálogo, que é uma relação horizontal entre pessoas – relação ‘eu-tu’ e não ‘eu-isso’ -, respeitadas como sujeitos, autônomas e com dignidade próprias. No fluir de palavras, experiências e ideias, no diálogo, melhor dizendo, no ‘pluriálogo’, a luta pela terra, por moradia adequada, por território etc. é construída e realizada processualmente, de forma permanente.

Assim, na luta coletiva por direitos acontece uma mudança na forma de conceber a história. Passa-se de uma compreensão linear, positivista e idealista, na qual a ideologia dominante reproduz as relações sociais de superexploração, para uma compreensão materialista histórico-dialético da realidade. A compreensão positivista abre espaço para a afirmação do ‘fim da história’, como se estivesse fadado a ser o futuro apenas uma repetição do presente e este uma mera repetição do passado.  Diferentemente, a concepção materialista e dialética da história introduz a possibilidade de superação das relações sociais de exploração e abre caminho para a afirmação de que a história não acabou, está em aberto e, consequentemente, podemos fazê-la no sentido de produzir transformações e mudanças que alterem para melhor – com ética e justiça – o que está dado. Isso acontece de alguma forma em níveis variados na luta pela terra, por moradia e por território como algo que fomenta processos emancipatórios. E essa compreensão, segundo Paulo Freire, não seria possível sem a utopia. “Na verdade toda vez que o futuro seja considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente […], ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia, portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta… Não há lugar para a educação. Só para o adestramento” (FREIRE, 2009, p. 92).

A luta pela terra, por moradia, por território e por outros direitos, realizada de forma coletiva, é uma forma de dar vazão, de forma organizada e canalizada, à indignação sentida no próprio corpo do camponês expropriado da terra, do sem-casa sacrificado pela cruz do aluguel (especulação imobiliária) ou pela humilhação que é sobreviver de favor, do parente indígena ou dos outros Povos e Comunidades Tradicionais desterritorializados, e exprimir o inconformismo e a rebeldia. Boaventura de Sousa Santos advoga isso para uma educação emancipatória: “Educação, pois, para o inconformismo, para um tipo de subjetividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente, que recusa a trivialização do sofrimento e da opressão” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 19). Em uma sociedade estruturalmente desigual não interessa uma educação escolar e uma ‘escola da vida’ que desencadeie o processo de inconformismo, mas, ao contrário, interessa adestrar e domesticar seres humanos para ser mera força de trabalho, máquinas vivas que funcionam a engrenagem do sistema do capital. A luta pela terra educa enquanto educação extraescolar e mais do que na ‘escola da vida’, pois educa na luta coletiva por direitos.

As compreensões teóricas positivistas e idealistas, compreensões veiculadas pela ideologia dominante – ideias da classe dominante -, inibem a luta pela terra, por moradia e por território enquanto pedagogia de emancipação humana. Por mais exploração que a pessoa humana sofra, ela não perde completamente a capacidade de se recriar. Assim, faz diferença quando a luta por direitos é impulsionada por compreensões teóricas do materialismo histórico-dialético, porque isso poderá ser um facilitador para desencadear práticas emancipatórias e não voltar a reproduzir o sistema do capital após as primeiras conquistas.

Referindo-se ao movimento do conhecimento, à dialética freiriana, Paulo Freire pondera: […] a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, a pessoa humana age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica, ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação” (FREIRE, 2002, p. 114).

Óbvio que o resultado depende do ser social, ou seja, para mudar é preciso mudar as condições materiais objetivas e não apenas a consciência. Não basta conscientizar. Não podemos admitir a perspectiva que afirma o ser existente como se fosse algo quase mecânico, determinado, que fosse dado como causa e efeito. Assim, recairíamos no determinismo. A realidade é complexa e envolve aspectos que muitas vezes alteram o curso da história. Concordamos com Paulo Freire em que possa ocorrer uma tendência, mas não como algo inexorável. Muitas vezes as ações estão em consonância com o que a pessoa pensa teoricamente, mas outras vezes, não. O que Freire sugere exige que a pessoa tenha compreensão crítica emancipatória em todas as dimensões da vida: politicamente, economicamente, socialmente, em questão de gênero, ecologicamente, religiosamente etc.

Paulo Freire alerta-nos que encontramos três tipos de consciência nas pessoas e as distingue como consciência ingênua, mágica e crítica (Cf. FREIRE, 2002, p. 113-114) e há pessoas que não vão à luta e outras que se engajam na luta por direito à terra, à moradia e pelo território. Em nível de conhecimento, às vezes, a pessoa se diz crítica com postura dialético-marxista politicamente, mas é neoliberal economicamente e fundamentalista religiosamente. Não apenas há diferença de consciência entre as pessoas, mas também nas pessoas em si mesmas. Para o processo de emancipação humana um grande desafio é despertar e promover prática e compreensão materialista histórico-dialética sob todos os aspectos que envolvem a convivência humana. Não pode, por exemplo, quem está na luta pela terra ser homofóbico ou quem milita no movimento LGBTTQI+ discriminar quem está na luta pela terra ou ser racista.

Assim, pode-se falar da chama acesa da esperança que brota e/ou reacende na luta coletiva dos oprimidos, injustiçados e todas as pessoas de boa vontade, como opção ética e humanística de lutar por terra, território, moradia, trabalho; por direitos fundamentais; por vida digna e por liberdade; com coerência, determinação e coragem.

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

Idem. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Cortez Editora, 2010.

13/12/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Dom Vicente: “Mineração em Brumadinho, MG e Brasil, matando crianças com metais pesados no sangue”

2 – Santana e João, casal exemplar no P.A Paulo Freire, em Arinos, MG! Exemplo de luta pela terra! Vid 3

3 – De Riachinho/MG: Dona Antônia, 1ª professora do sertão do Urucuia, e Sr. Vadu: uma história exemplar

4 – Horta Comunitária e Escola Indígena na Retomada Indígena Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: BELEZA!

5 – “Não aceitamos despejo nem mortos!” Povo da Ocupação Fábio Alves no Barreiro, em BH/MG. Vídeo 5

6 – Com + de 600 casas, Povo da Ocupação Prof. Fábio Alves, no Barreiro, BH/MG, jamais aceitará despejo

7 – Davi Kopenawa e Yanomami/Watoriki comemoram vitória de Lula e reivindicam demandas urgentes-09/11/22

8 – STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia – Por frei Gilvander – 10/11/2022

9 – Mística Kamakã Mongoió e música indígena: final da VII Semana de Antropologia e Arqueologia da UFMG

10 – Despejo é violência, destrói casas, história e sonhos Ocupação Novo Horizonte/Ribeirão das Neves/MG

11 – Trajetória apaixonante do Povo Indígena Kamakã Mongoió até Retomada de Território em Brumadinho/MG

12 – “A Vale matou meu irmão. Todo mundo em Brumadinho está doente por causa da Vale” (Paré, do Tejuco)

13 – Frei Gilvander: “A Vale S/A está fazendo guerra contra a mãe terra, as águas, os povos e todo o …”


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III