Estado de Exceção Ambiental: Injustiça Socioambiental em progressão geométrica
Não é segredo para ninguém que o avanço da pandemia da COVID-19 criou inúmeras excepcionalidades em nosso ordenamento jurídico e na ação ou omissão do Estado. A alta letalidade do novo coronavírus – no Brasil oscila em torno de 7% a 8% – faz com que o Estado crie regras temporárias que limitam, por exemplo, o direito de “ir e vir” em nome da proteção de um direito com maior valor: a Vida.
Todavia, na Presidência da República, temos um chefe de Estado que atenta constantemente contra o direito à Vida. Isso já havia ficado claro na campanha eleitoral quando afirmou que tinha um torturador como ídolo, “que nem um centímetro de terra seria demarcado para indígenas e quilombolas” etc. Tal situação força os chefes de outras esferas – estadual e municipal – a criarem regras limitativas para prevalência da Vida.
No nosso entendimento, uma pessoa eleita, nomeada ou aprovada em um concurso a qualquer cargo com obrigação pública – seja no legislativo, seja no executivo, seja no judiciário – tem a obrigação de proteger, preservar e promover a vida a OBRIGAÇÃO, inclusive por dever constitucional, uma vez que um dos princípios basilares da Constituição Federal é o respeito à dignidade da pessoa humana!
Diante das revelações da reunião ministerial estarrecedora, já em meio à pandemia, dia 22 de abril de 2020, fica claro que a intenção do presidente e de ministros não é a preservação da vida, mas sim a garantia de privilégios de cunho pessoal e corporativo, e a continuidade de um projeto de saque dos bens naturais e de entreguismo do patrimônio público para grandes empresas via privatização ou concessão. Isso ficou claro nos discursos de ódio e de insensibilidade diante do povo que está submetido às agruras da pandemia, do saque de direitos e de uma política econômica que privilegia os interesses dos banqueiros. Posturas odiosas e execráveis foram vomitadas e recheadas por 37 palavrões proferidos na reunião, 29 palavrões proferidos pelo presidente quando, inclusive, ameaçou de forma clara e evidente trocar a chefia da Polícia Federal, mas também nos saltou aos olhos os dizeres estarrecedores de vários ministros, entre os quais o Ministro Ricardo Salles que na prática atua contra o Meio Ambiente. Para espanto de todo o povo, Salles disse:
“A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo, cobrou da Teresa, cobrou do Tarcísio, cobrou de todo mundo.”
Podemos notar que a má intenção do Ministro em pôr em prática seu projeto de morte está sustentada em duas muletas: a primeira é aproveitar da comoção nacional causada pela pandemia do novo coronavírus, que ocupa boa parte dos noticiários, para avançar com a devastação do meio ambiente; a segunda é aproveitar de um momento de excepcionalidade do direito que deveria garantir o direito à Vida, para exatamente ferir o direito à Vida, exigindo uma desregulamentação infralegal, com potencial de comprometer presentes e futuras gerações.
Não satisfeito, o ministro deixou as pessoas de boa vontade e as instituições democráticas estarrecidas, ao bradar plano macabro para devastar o meio ambiente em conluio com os grandes interesses econômicos:
“Então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação”.
Essa postura do antiministro do Meio Ambiente é gravíssima e intolerável, pois revela falta de ética, falta de transparência, interesses sombrios e incompatibilidade moral para ocupar um cargo tão importante para o presente e futuro do povo brasileiro e de toda biodiversidade. “Mudar e simplificar” quais regras para favorecer quem? O que a opinião pública não deve saber? O antiministro Ricardo Salles está condenado judicialmente em primeira instância por improbidade administrativa quando era secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na prática, ministro contra a Educação, afirmou durante a repugnante reunião ministerial que odeia os termos povos indígenas e povos ciganos. “Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo, odeio. Odeio povos ciganos”, bradou o ministro cuspindo ódio. E se referiu aos ministros do Supremo Tribunal Federal chamando-os de vagabundos e chegou a dizer que “eles devem ser presos”.
As falas e posturas da vergonhosa e repugnante reunião ministerial apenas evidenciam o que já era ressaltado por muitas pessoas: a insensibilidade do desgoverno federal com o direito à vida. Não obstante, trazem à luz algo ainda mais grave, que o Ministro do Meio Ambiente quer aproveitar o momento de luto e comoção da imprensa para acentuar seu projeto de morte: saquear os bens naturais que são necessários para garantir as condições de vida do povo e de toda a sociobiodiversidade. Isso é inaceitável!
Depois da fatídica e execrável reunião, vimos o desgoverno federal implementar via decretos as atrocidades ditas na reunião que foi um festival de baixaria e planos macabros. Dia 28 de abril de 2020, o presidente publicou o Decreto 10.329 que colocou a mineração no rol de atividades essenciais, o que foi muito bem questionado pela vereadora belo-horizontina Bela Gonçalves no artigo intitulado “Mineração é mesmo uma atividade essencial?”.[1] Essencial para quem? Para o povo e para o meio ambiente, mineração tem sido como dragão do Apocalipse que dissemina devastação onde se instala e deixa atrás de si só terra arrasada.
Não satisfeito, dia 08 de maio de 2020, o desgoverno federal publicou o Decreto 10.334 colocando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Polícia Federal e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sob tutela do exército, que terá a discricionariedade de dizer onde os órgãos devem operar e fiscalizar. Isso, um absurdo constitucional, é violentar a autonomia da missão constitucional que tem o IBAMA, o ICMBio e a Polícia Federal.
Somado a isso, dia 14 de maio de 2020, houve a publicação do Decreto 10.347, que transfere o Plano Anual de Outorga Florestal das mãos do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura – outra aberração e atentado contra o meio ambiente. Todavia, tal decreto está sendo questionado no Tribunal de Justiça do Pará – nos ditos populares, essa transferência seria o mesmo que ‘mandar o cabrito vigiar a horta’ ou ‘colocar raposa para cuidar do galinheiro’.
Ainda tivemos a tentativa de se colocar em pauta a Medida Provisória 910 (MP da Grilagem) no dia 12 de maio de 2020, que previa a alteração de regras para regularização fundiária de terras públicas, em benefício principalmente de fazendeiros, madeireiros e grileiros da região amazônica. A MP 910 visava entregar para fazendeiros, madeireiros e grileiros mais de 57 milhões de hectares de terra. Ou seja, seria para legalizar a grilagem de terras.
E, pasmem, dia 30 de abril último, dois fiscais do IBAMA na região Amazônica foram exonerados POR FISCALIZAREM e realizar ação de combate à invasão de terras indígenas. Os fiscais foram exonerados por terem cumprido as funções que são exigidas à proteção ambiental. Ilegalidade, inconstitucionalidade e injustiça que clama aos céus!
A cronologia dos decretos nos revela o projeto facínora do desgoverno federal que está em vigor no Brasil, em que vivemos a triste realidade da imposição de regras excepcionais esvaziadas do intuito de preservar as condições de vida, pois é feita, ao contrário, visando aumentar mortes, seja de pessoas, seja da mãe natureza, criando o ESTADO DE EXCEÇÃO AMBIENTAL, em que tudo é permitido para devastar! É a necropolítica em curso. Se não interrompermos esse macabro projeto de morte, milhões de pessoas serão mortas e será total a devastação da Amazônia e do que ainda resta de Mata Atlântica e dos outros biomas.
O papa Francisco adverte na Encíclica Laudato Si’: “Não é suficiente conciliar, a meio-termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. … O discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo (tergiversação) e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem” (Laudato Si’ n. 194).
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Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG).
Belo Horizonte, MG, 24 de maio de 2020.
[1] https://www.otempo.com.br/politica/gabinetona/mineracao-e-mesmo-uma-atividade-essencial-1.2339813