Força de trabalho e ideologia, oxigênio das relações do capital. Por Gilvander Moreira[1]
Em muitas passagens de O Capital, o filósofo Karl Marx se refere à classe dominante, integrada por capitalistas, especuladores de bolsa, proprietários de terra, e à classe proletária, que é composta pelos trabalhadores: todos aqueles que, não tendo outra coisa, são obrigados a vender sua força de trabalho. São trabalhadores das indústrias, das fábricas, assalariados, trabalhadores camponeses, entre outros, que vendem sua força de trabalho como mercadoria para os capitalistas. De uma forma analógica, podemos dizer que “a molécula Trabalho encontra-se com a molécula Capital e produzem o ser do Capital” (IASI, 2006, p. 91). A força de trabalho é uma espécie de oxigênio para manter vivas as relações do capital. No capitalismo, as classes sociais tecem relações sociais de interesses contraditórios entre capital e trabalho. Óbvio que há diferenciação no interior da classe trabalhadora, na qual estão os trabalhadores assalariados, entre os quais os qualificados (engenheiros, diretores, administradores etc.), a chamada classe média – pequena burguesia -, que não é propriamente uma classe, pois tem sempre identidade ambígua por estar mais voltada para a classe dominante e de costas para a classe trabalhadora. “Um latifundiário é proprietário de meios de produção, mas, não os utilizando como capital e não contratando força de trabalho assalariada, não se constitui em burguês, formando uma classe à parte” (IASI, 2011, p. 107), mas cumpre ressaltar que, no caso do Brasil, há uma estreita sintonia entre os grandes proprietários de terra que normalmente são as grandes empresas e empresários da cidade. Assim, os grandes proprietários de terra que estão inseridos no agronegócio são intrinsecamente capitalistas, pois, além de lucrar com a renda da terra, compram a força de trabalho, produzem mais-valia e, assim, acumulam capital.
O conceito de classe é relacional. Há classe trabalhadora assalariada, porque há a classe capitalista proprietária dos meios de produção. Não é apenas a determinação econômica que define a classe, mas também a determinação sociocultural. A consciência e a ação são fatores que constituem a classe. Em algum momento da história, as classes se tornam sujeitos históricos, pois a história é movida pela luta de classes.
É necessário restar evidente o conceito de “ideologia” que “surgiu durante a Revolução Francesa, primeiramente como o nome de uma nova ciência fundada pelos assim chamados ideólogos franceses. Foi Destutt de Tracy que, em abril de 1796, introduziu esse conceito em uma conferência proferida no Instituto Nacional de Paris. Por ideologia, Destutt de Tracy entendia uma ciência das ideias que deveria ser a ciência primeira e fundamental. Os ideólogos polemizavam contra a metafísica e a ideologia e, politicamente, defendiam pontos de vista liberais. Napoleão, que inicialmente fora um discípulo dos ideólogos, concebia “ideologia” como frívolas brincadeiras do pensamento e invencionices vãs e rejeitava sua influência sobre a política. “Os ideólogos franceses entendiam ‘ideia’ como representação obtida sensivelmente e acreditavam, com isso, ter encontrado um fundamento seguro para toda filosofia. Napoleão, porém, dá ao conceito o significado de um conteúdo que transcende a empiria e a realidade, de modo que, para ele, a ideologia representa apenas um raciocínio e uma teoria desessencializada e distante da prática, uma forma de pensamento com pretensões ilegítimas a uma validade prática. Com Napoleão, o conceito de ideologia se torna um conceito polêmico, com o qual os adversários políticos devem ser desqualificados”” (DIERS, nota n. 14, apud MARX; ENGELS, 2007, p. 548).
Entendemos ideologia como todas as ideias produzidas pela classe dominante, ideias que mascaram e escamoteiam os conflitos sociais, injustiças sociais e violências praticadas na sociedade capitalista sob o signo do capital. Com Marx e Engels definimos ideologia como “a forma distorcida, carola e hipócrita, pela qual os burgueses expressam seus interesses particulares como interesses universais” (MARX; ENGELS, 2007, p. 170). Com ideologia – ideias abstratas – atacam-se apenas ilusões, mas não os verdadeiros poderes dominantes do mundo do capital (Cf. MARX; ENGELS, 2007, p. 232). Assim, segundo Marx, a ideologia pressupõe uma relação social de dominação, o encobrimento da realidade conflituosa e violentadora de uma sociedade de classes antagônicas e a apresentação de ideias e concepções de mundo particulares como se fossem universais.
É engano pensar a sociedade capitalista como sendo “composta por apenas duas classes sociais: a burguesia (os capitalistas) e o proletariado (os trabalhadores assalariados)” (OLIVEIRA, 2004, p. 34). Segundo Marx a sociedade moderna – capitalista – é composta por três grandes classes: proletariado, burguesia e proprietários de terra. “Os proprietários de mera força de trabalho, os proprietários de capital e os proprietários da terra, cujas respectivas fontes de rendimentos são o salário, o lucro e a renda fundiária, portanto, assalariados, capitalistas e proprietários de terra, constituem as três grandes classes da sociedade moderna, que se baseia no modo de produção capitalista” (MARX, 1986, p. 317).
Marx, Engels e marxistas usam com frequência os termos ‘produção’ e ‘reprodução’. Não podemos entender como se ‘produção’ dissesse respeito apenas à produção de mercadorias e ‘reprodução’ no sentido biológico de recomposição das pessoas pela geração e nascimento de novos seres humanos. Lefebvre precisa o sentido de ‘produção’ e ‘reprodução’ usado por Marx e Engels: “Num retorno às fontes, ou seja, às obras da juventude de Marx (sem, no entanto, deixar de lado O capital), o termo produção readquire um sentido amplo e vigoroso. Sentido esse que se desdobra. A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, de uma parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o espaço sociais), em resumo, a produção ‘espiritual’, e, de outra parte, a produção material, a fabricação de coisas. Ele designa também a produção do ‘ser humano’ por si mesmo, no decorrer de seu desenvolvimento histórico. Isso implica a produção das relações sociais. Enfim, tomada em toda a sua amplitude, o termo envolve reprodução” (LEFEBVRE, 1991, p. 37).
Por ‘relações de produção’ entendemos “o conjunto das relações que se estabelecem entre as pessoas em uma sociedade determinada, no processo de produção das condições materiais de sua existência” (OLIVEIRA, 2007, p. 36). Por ‘relações capitalistas de produção’ entendemos as “relações baseadas no processo de separação dos trabalhadores dos meios de produção, ou seja, os trabalhadores devem aparecer no mercado como trabalhadores livres de toda a propriedade, exceto de sua própria força de trabalho” (OLIVEIRA, 2007, p. 36). O/a trabalhador/a é considerado/a ‘livre’ no sentido de não ter propriedade alguma, além do seu próprio corpo. “O capital não o priva apenas de mercadorias, reduzindo-o a consumidor marginal, mas priva-o, também, do conhecimento e do saber adequados à compreensão e à explicação do capitalismo” (MARTINS, 1989, p. 106). Enfim, é por isso que a força de trabalho e a ideologia dominante são o oxigênio das relações superexploradoras do sistema do capital.
Referência
IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
_____. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
LEFEBVRE, Henri. Estrutura social: a reprodução das relações sociais. In: FORACCHI; Martins (org.). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
MARX, Karl. O Capital, livro III, vol. III, tomo 2. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, 2004.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 24 de julho de 2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 – Ilha das Flores Completo Melhor Resolução
2 – Silvinho/MST: ORGANIZAÇÃO, CORAGEM, UNIDADE. Campo do Meio/MG – 11/12/2017.
3 – Leonardo Péricles/MLB – 1a Parte – Encontro Estadual do Conselho da CPT/MG -BH/MG – 17/11/ 2017
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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