Início da luta pela terra no sul de Minas: memória inspiradora.
Por Gilvander Moreira[1]
Dia 02 de julho de 1997, o primeiro acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) no sul de Minas Gerais, no município de Campo do Meio, na fazenda Jatobá, se tornou oficialmente o PA Primeiro do Sul. Com área de 864 hectares, conserva 40% de seu território como mata nativa preservada em serras e grotas, áreas declinadas, difíceis de ser cultivadas. Segundo Sílvio Neto, “Em 40% da área do assentamento as famílias assentadas não mexem, pois é reserva de mata nativa”. A maior parte do assentamento é constituída de terras férteis, lugares onde havia muita água, mas as águas estão diminuindo. A mata nativa do Assentamento se liga a uma mata existente nas terras da ex-usina Ariadnópolis, somando cerca de mil hectares que tem sido moradia – habitat – de uma infinidade de animais e pássaros que migraram de muitas outras regiões devastadas ambientalmente.
Enquanto estava abandonada, a fazenda Jatobá se tornou área de turismo de caça ilegal. O assentado Sebastião Mélia Marques nos informa que “nos finais de semana, vinham pessoas de várias cidades da região com caminhão cheio de cavalo e cachorros para caçar veado, onça e paca. No primeiro final de semana após a ocupação, as famílias do acampamento Primeiro do Sul viram os turistas de caça chegarem e ficaram observando o que eles faziam. No segundo final de semana, após planejar, os camponeses Sem Terra acampados chegaram de repente onde os turistas estavam armando barracas e fazendo churrasco e perguntaram: “O que vocês estão fazendo aqui?” Eles alegaram que estavam acostumados a vir nos finais de semana caçar nas matas da fazenda Jatobá. Com os instrumentos de trabalho nas mãos – enxada, foice, machado e facão -, os Sem Terra disseram: “nós vamos chamar a polícia para vir aqui lavrar um Boletim de Ocorrência. Antes disso, vocês não poderão ir embora”. Um dos caçadores se identificou como sendo delegado e pediu para não chamar a polícia, pois iria acabar com a carreira dele. Outros disseram que se os Sem Terra não chamassem a polícia, nunca mais eles voltariam. Assim, os caçadores foram liberados e nunca mais voltaram a caçar nas matas do PA Primeiro do Sul. Dessa forma, pusemos fim à matança de animais na mata e à ilegalidade que reinava há quase uma década nas terras do que é hoje o PA Primeiro do Sul.”
No PA Primeiro do Sul vê-se a contradição entre a agricultura do agronegócio e a agricultura camponesa, que precisa de árvores e, por isso, os camponeses as preservam. “Além da reserva florestal de 40% do território do assentamento, em todos os lotes há muitas árvores. Essa é uma característica da agricultura camponesa: ela precisa de árvores. O agronegócio, em uma forma antiecológica, devasta tudo. Quanto mais mecanização menos árvores” (Sílvio Neto, da coordenação do MST).
O PA Primeiro do Sul iniciou-se com quarenta famílias assentadas em quarenta lotes, pois das 80 famílias que participaram da ocupação quarenta desistiram antes da conquista do assentamento. Atualmente, após vinte e um anos de muita luta e muitas vitórias, o Assentamento conta com mais de 50 famílias, sendo mais de dez de filhas e filhos de assentadas e assentados que se casaram e resolveram permanecer no campo ou voltaram para o campo, porque na cidade estavam sofrendo muito sem perspectivas de futuro. Essas mais de dez famílias fizeram casas nos lotes dos pais. Das quarenta famílias assentadas, após 21 anos, somente quinze perseveram no assentamento desde o início da ocupação. Vinte e cinco famílias, o que equivale a 62,5%, desistiram por vários motivos, entre os quais várias famílias oriundas de regiões de clima quente não se adaptaram ao clima frio do sul de Minas e a demora na liberação de créditos que viabilizam a produção e a permanência no campo. Sebastião Mélia Marques nos explica: “Perdemos muitas famílias, porque não conseguiram desenvolver a produção e não acostumaram com o jeito de vida aqui no campo, no sul de Minas. Perdemos 25 famílias das que foram assentadas no início do Assentamento. O fator que mais contribui para a desistência das famílias é a demora do governo em liberar os créditos para o financiamento da produção, o que dificulta muito a vida no campo. As famílias vieram de fazendas de café onde ganhavam apenas um salário mínimo. Salário esse entregue totalmente no armazém e na farmácia. Chegaram aqui na Ocupação apenas com quatro pares de roupas em uma sacola. Vieram praticamente sem nada. Somente após dois anos, recebemos o primeiro crédito, que é o Fomento no valor de R$1.500,00, na época, para comprar ferramentas e alimentos. Tivemos que fazer campanha de arrecadação de alimentos na região para sustentar as famílias aqui do PA Primeiro do Sul até iniciarmos a produção de abóbora e de verduras, que é o que se produz mais rápido”.
Todas as questões que dizem respeito às famílias assentadas são discutidas na coordenação do assentamento e em assembleias gerais. Por exemplo, a definição de quais famílias continuariam morando nas casas da agrovila e quem iria construir suas casas nos lotes foi discutida. Deliberou-se em votação, após discussão, que as famílias Sem Terra que preferissem permanecer nas residências da agrovila do PA Primeiro do Sul receberiam lotes menores em relação às famílias que tiveram que construir suas próprias casas. A maior parte das casas construídas fora da agrovila, nos lotes, foi por autoconstrução, realizada por meio de mutirões entre as famílias dos assentados.
No início os acampados formaram uma horta coletiva em três hectares de terra, horta que foi a base mais rápida para produzir alimentos para as famílias. Sílvio Neto nos informa: “O que garantiu a alimentação no Acampamento Primeiro do Sul e o início do Assentamento foi basicamente peixe, abóbora e hortaliças. Peixe da barragem de Furnas, – que fica distante apenas quatro quilômetros -, abóbora e hortaliças, porque produzem rápido”. O excedente era vendido na cidade para adquirir dinheiro para comprar outras coisas. As famílias acampadas recebiam também cestas básicas doadas por pessoas e organizações apoiadoras da luta pela terra. Padres e pastores fizeram campanha de cesta básica para ajudar no sustento das famílias. “Naquela época, a pobreza era muito grande. A gente batia nas portas e as pessoas ajudavam”, informa Sebastião Mélia Marques. “Como os acampados eram trabalhadores boias-frias na região, e, por isso, conheciam muita gente, conseguimos arrumar um trator arrendado para nos ajudar a preparar a terra para plantarmos feijão, milho e arroz. A gente pagava o trator trabalhando como boias-frias nas fazendas próximas daqui. No início, colhemos muito arroz. Quando a gente chegou aqui, choveu um mês sem parar, mas isso não acontece mais. A falta de chuva está sendo a regra aqui na região” (Vadilsom Manoel Da Silva, Sem Terra assentado no PA Primeiro do Sul).
No PA Primeiro do Sul, os quarenta lotes não têm o mesmo tamanho: variam de 12 a 19 hectares, dependendo da topografia – “terra com maior declive é menos agricultável” -, da existência de fontes d’água e de áreas de reserva florestal. Esse critério foi proposto pelo MST e, após discussão em assembleia, foi aprovado pelas famílias. O INCRA teve que acatar os critérios que as famílias tinham definido sobre a partilha da terra, conforme relato de Sebastião Mélia Marques: “Como o INCRA demora muito para vir demarcar os lotes, a gente mesmo se organizou na divisão da terra. Formamos a coordenação e os setores. Na coordenação, a gente discutiu qual o tamanho de terra necessário para cada pessoa sobreviver ali. As próprias famílias discutiram o tamanho (“Eu acho que 12 hectares pra nóis é suficiente”). Aí a gente perguntou: E a terra mais inferior? (“Ah não, aí teria que ser quinze, ou dezoito hectares”). Aí se chegou num consenso que o lote na terra melhor devia ter 12 hectares e na terra inferior, 15 ou mais hectares. Assim foi decidido por nós aqui no Primeiro do Sul, que tem o menor lote com 12 hectares e o lote maior com 19 hectares. Medimos a terra com uma corda, um lote para cada família. Quando o INCRA chegou aqui, já estava cada família no seu lote produzindo de acordo com as próprias famílias que chegaram e foram cultivando”.
O PA Primeiro do Sul possui uma área de 27 hectares para uso coletivo para criação de gado que não cabe nos lotes familiares. Há também uma agrovila, que é área comum, onde moram 27 famílias. As crianças e os adolescentes estão estudando na cidade de Campo do Meio, distante 21 quilômetros. Uma Kombi recolhe as crianças nos lotes e as leva até a agrovila. Um ônibus de linha passa na agrovila, às 6h da manhã e leva as crianças dos lotes e as da agrovila para a escola na cidade. As crianças voltam de ônibus após as 11h. À tardezinha, o ônibus leva adolescentes e jovens para estudarem na cidade de Campo do Meio à noite e por volta das 23h retornam para o Assentamento.
Na agrovila do PA Primeiro do Sul há uma igreja para celebrar cultos e uma escola para alfabetização de jovens e adultos. Uma garagem para tratores, que estava abandonada, foi transformada em Centro Comunitário, onde as famílias assentadas fazem as assembleias e os cursos sobre política, agroecologia, produção, discussão de projetos, organização para as lutas, visitas de estudantes, pesquisadores e rede de apoio. A luta das famílias assentadas do PA Primeiro do Sul conquistou um médico clínico geral e uma enfermeira do Sistema Único de Saúde (SUS), do Programa de Saúde da Família, que atende a pessoas com problemas de saúde na agrovila do PA Primeiro do Sul uma manhã por mês. Com a receita em mãos, as pessoas têm que comprar o remédio nas farmácias da cidade, porque pouquíssimos remédios são fornecidos na farmácia do hospital público de Campo do Meio.
Belo Horizonte, MG, 04/12/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III