Injustiça agrária e ambiental em Nova Serrana: “Sem Terra sai e boi fica.” Por frei Gilvander Moreira[1]
Na região centro-oeste de Minas Gerais, a cidade de Nova Serrana é conhecida como uma das cidades produtoras de calçados em grandes indústrias e nos fundos das casas, mas, a partir do dia 26 de abril de 2018, passou a ser conhecida também como o município onde reina injustiça agrária e socioambiental, cidade que expulsa Sem Terra para fazer Aterro Sanitário próximo a área ambiental, ao lado do rio Pará, que nasce na Serra das Vertentes, no município de Resende Costa e, ao longo de 365 quilômetros, oferece gratuitamente água para o povo e todos os seres vivos de quatorze municípios: Desterro de Entre Rios, Passa Tempo, Piracema, Carmópolis de Minas, Itaguara, Cláudio, Carmo do Cajuru, Divinópolis, São Gonçalo do Pará, Nova Serrana, Conceição do Pará, Pitangui e Martinho Campos, onde, logo após, deságua no rio São Francisco. O rio Pará é um dos principais contribuintes da barragem da Hidrelétrica de Três Marias.
Após muitas décadas de abandono, sem cumprir sua função social, em 2012, a fazenda Canta Galo, ao lado do rio Pará, no município de Nova Serrana, foi ocupada por famílias sem-terra e sem-casa que não toleravam mais a pesadíssima cruz do aluguel e a vida muito opressiva na cidade de Nova Serrana. A fazenda Canta Galo é do Governo de Minas, mas foi repassada em concessão de uso para o município de Nova Serrana e outros sete municípios. Entretanto, houve desvio de finalidade -, o que é ilegal -, pois criaram um consórcio com mais de 45 municípios para usufruir da fazenda. Pouco a pouco as famílias foram ocupando a fazenda Canta Galo, até chegar a 169 famílias. Lá estavam cultivando cerca de 60 hectares de terra, sendo 02 hectares de banana, 10 de milho, 10 de mandioca, 10 de feijão, 10 de quiabo, 02 de batata doce e 15 hectares de hortaliças (alface, salsinha, cebolinha, abóbora, pimenteiras e maracujá. Porém, dia 26 de abril de 2018, as famílias Sem Terra foram violentadas na sua dignidade e no seu direito de acesso à terra e à moradia digna, pois foram despejadas por decisão liminar da Vara Agrária de Minas Gerais, atendendo a pedido do prefeito de Nova Serrana, Euzébio Rodrigues Lago (PMDB), com apoio do Governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), que enviou mais de 250 policiais da Polícia Militar de Mina Gerais, fortemente armados, que, com 10 caminhões, tratores e retroescavadeiras e até helicóptero formaram um ostensivo aparato que chegou à Ocupação-Comunidade Nova Jerusalém para a operação de despejo.
Cônscias da tremenda injustiça que estavam sofrendo e esperançosas de retornar para suas casas que deveriam ter ficado intactas segundo a decisão judicial conquistada a pedido do Ministério Público de Minas Gerais da área de Conflitos Agrários, mais de 100 famílias, para evitar um massacre, diante do mega aparato militar que estava preparado para despejá-los à força, saíram e acamparam ao lado da fazenda Canta Galo, fora da porteira da fazenda, ao relento, sem comida, sem água, sem cobertor e sem seus pertences. Incluindo medicamentos de doentes crônicos, berços e roupinhas de crianças que estão pra nascer, os pertences das famílias foram jogados em caminhões e levados para outro município: Pitangui. Injustiça agrária, violação de direitos humanos e injustiça ambiental que clama aos céus! O despejo aconteceu sem nenhuma alternativa prévia digna. A Juíza tinha proibido a demolição das 79 casas de alvenaria já construídas. Entretanto, contrariando ordem judicial, suas casas foram arrombadas com portas e janelas arrancadas; e arrombada foi também sua dignidade humana, violados foram seus direitos. Toda essa violência moral, psicológica, toda essa humilhação foi praticada pelo Estado e por um grupo de prefeitos da região que formaram um Consórcio Intermunicipal para a construção de um Aterro Sanitário e decidiram instalar na área, que é de preservação ambiental, violando a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305 de 2010 que, em seu artigo 47, quando trata das proibições para a disposição de resíduos, proíbe que seja em áreas como praias, mar ou em quaisquer corpos hídricos, como é o caso do rio Pará. Aterro sanitário próximo de área de preservação ambiental e de rio é ilegal. Nessa área, as famílias cuidavam da terra, das águas, produziam alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, e conviviam em perfeita harmonia com a natureza, cuidando do meio ambiente.
No dia seguinte, 27/4/2018, famílias que tinham levantado acampamento na beira da fazenda foram novamente despejadas pela PM de MG, sem ordem judicial, uma arbitrariedade. Despejar sem decisão judicial é coisa de quem age fora da lei. O povo marchou uns 2 Km e acampou na beira da BR 494, entre Nova Serrana e Conceição do Pará, mas à tardezinha do mesmo dia, 27/4/2018, a Polícia Militar, pela 3ª vez, expulsou as famílias, ameaçando de prisão quem resistisse. Mais uma vez, sem decisão judicial, ação arbitrária e covarde. Após serem despejadas três vezes em dois dias, as famílias marcharam cinco quilômetros e acamparam ao lado do Rio Pará, próximo à fazenda Canta Galo, no município de Conceição do Pará, e lá estão fortalecendo o acampamento.
Por que a Polícia Militar não respeita a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Processo HC 5574 SP 1997/0010236-0, sexta turma, da lavra do ministro William Patterson que diz: “Movimento Popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o patrimônio, configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do estado de direito democrático.”? Portanto, policiais, ocupação de terra coletiva de propriedade que não cumpre a função social não é esbulho, é um direito constitucional. Logo, quando vocês, policiais, despejam uma ocupação/acampamento sem decisão judicial e sem alternativa digna prévia, vocês estão agindo fora da lei, estão cometendo ilegalidade e inconstitucionalidade grave. E serão responsabilizados por isso.
Tem sido muito comovente e nos deixa indignado ouvir relatos de várias pessoas do Acampamento Nova Jerusalém, que, chorando, narram a violência que sofreram. Por exemplo, duas mulheres grávidas de oito meses foram expulsas de suas casas e até os berços que tinham já comprado para as crianças que devem nascer em breve foram retirados delas pela PM, a mando do poder judiciário. “Vamos ganhar neném sem terra, sem casa, sem o berço e sem as roupinhas que a gente estava juntando para nossas crianças que estão no nosso ventre”, disse uma das mães gestantes de oito meses. Uma senhora clamou: “Eu sou diabética e já sofri AVC. Os policiais levaram até minha insulina. Estou há três dias sem insulina. Hoje, um filho de Deus me levou na cidade para tomar uma dose de insulina. Como pode o Estado pisar na gente desse jeito? E mais, nos tiraram da fazenda, mas deixaram lá o gado que fazendeiros criam lá comendo pasto da fazenda. É justo isso?”
O justo e necessário é o TJMG rever a decisão que mandou despejar, acolhendo positivamente a Ação Civil Pública da Defensoria Pública de MG e autorizar o retorno das famílias para a fazenda Canta Galo e a devolução de seus pertences. As famílias estão determinadas a seguir lutando até depois de conquistar a terra para plantar, morar e produzir alimentos saudáveis sem agrotóxico e convivendo de forma respeitosa com o meio ambiente. E estão dispostas também a continuar lutando para impedir a ilegalidade da construção de um Aterro Sanitário em área ambiental ao lado do rio Pará, que tem direitos e precisa ser respeitado.
Não é à toa que a comunidade despejada, mas reerguida, se chama Acampamento Nova Jerusalém. “Vi, então, um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Nova Jerusalém, pronta como companheira que se enfeitou para seu companheiro. Nisso, saiu do trono uma voz forte. E ouvi: “Está é a tenda de Deus com as pessoas. Deus vai morar com o povo. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram!” (Apocalipse 21,1-14).
Está decretado pela luta de um povo de fé libertadora: a terra será conquistada e o povo, na luta, construirá uma comunidade, um lugar bom de viver, em harmonia com a mãe terra, com a irmã água e com todos os seres vivos. E, assim, será sempre Nova Jerusalém. Nem aterro sanitário e nem terra para engordar boi, mas terra partilhada para o povo viver em paz e produzir alimentos saudáveis, sem agrotóxico. Isso é o que o Deus da vida pede e o povo, por isso, seguirá de cabeça erguida, lutando. Onde cantava galo, é preciso voltar a cantar também os Sem Terra. Chorume de Aterro Sanitário não pode cantar naquela fértil mãe terra, irrigada pela irmã água de muitas nascentes, lagoas e pelo irmão rio Pará.
Belo Horizonte, MG, 01/5/2018.
Obs.: Os onze vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
- O clamor do povo da Ocupação Comunidade Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG. 25/4/2018.
- Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG – O clamor de Frei Gilvander: Despejo, não, por Deus! 25/4/18
- Despejo da Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: Injustiça que clama aos céus. 25/4/2018.
- Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: direito à REURB: regularização Fundiária. Cadê? 25/4/2018.
- Ocupação Nova Jerusalém em Nova Serrana, MG: Despejo, não! Respeito à legislação, sim. 25/4/2018.
- Ocupação-Comunidade Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: O clamor contra o despejo. 26/4/2018.
- Ocupação-Comunidade Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: Relatos de um despejo injusto e cruel. Áudio – 26/4/2018
- Despejo da Ocupação-Comunidade Nova Jerusalém, em Nova Serrana MG: Vidas são trocadas por lixo. 27/4/2018.
- Áudio – Despejo da Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: Clamor do povo na BR 494. 27/ 4 /2018.
- Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: Luta por terra e pela Mãe Terra. Dr. Paulo César. 25/4/2018
- Despejo da Ocupação Nova Jerusalém, em Nova Serrana, MG: Covardia e injustiça contra a Vida. 26/4/2018
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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