Linguagem revolucionária, instrumento de luta

Linguagem revolucionária, instrumento de luta. Por Gilvander Moreira[1]

Assim como ninguém é neutro e nem apolítico, a linguagem também não é neutra. Assim, precisamos estar atentos/as na escolha das palavras que usamos, pois, muitas vezes, sem perceber, podemos usar uma linguagem que atende aos interesses dos opressores. Se estivéssemos em uma sociedade com relações sociais justas e igualitárias, todas as pessoas poderiam amar todos/as da mesma forma, ser educado/a e solidário/a do mesmo jeito, indistintamente. Entretanto, estamos em uma sociedade com relações sociais injustas, que reproduzem e ampliam cotidianamente a desigualdade social. Em uma sociedade marcada pelo antagonismo entre classes divididas, onde uma domina e a outra trabalha, entre uma que superexplora e se enriquece e outra, que é expropriada de tudo, fica cada vez mais empobrecida e, muitas vezes, quem desrespeita, oprime, explora e violenta é o mesmo que formula e implementa socialmente pela ideologia dominante os pretensos valores que todos/as são induzidos a seguir. É comum observarmos quando os explorados se unem, se irmanam e, de forma organizada, lutam pelos seus direitos serem chamados de “violentos”, de “arruaceiros”, de “foras da lei”.

Para atender aos seus interesses de acumulação de capital e se manter no poder político, a classe dominante sempre coloca os direitos individuais acima dos direitos sociais. Por outro lado, a classe trabalhadora e a classe camponesa precisam sempre (re)afirmar que os direitos sociais estão acima dos direitos individuais. Por exemplo, diante do trânsito bloqueado pelo povo das Ocupações Urbanas que lutam por moradia própria e adequada, os da classe dominante e os aliados/alienados que existem no meio da classe trabalhadora sempre gritam: “Estão atrapalhando o meu direito de ir e vir”. Em resposta, o povo cansado de sobreviver de favor ou debaixo da cruz do aluguel, de cabeça erguida, na luta por moradia adequada, grita em alto e bom som: “O direito à moradia, um direito humano básico e social, está acima do direito de uma minoria ir e vir. Os direitos individuais devem ser respeitados após o cumprimento dos direitos sociais e não antes”.

Em contexto de contradição social que esgarça os conflitos e desencadeia violência dos que controlam os poderes econômico, político, jurídico e midiático, pedir para sermos simpáticos diante de quem está desrespeitando e violentando outros é compactuar com a falta de respeito e violência contra o outro. Pessoas moderadas e conciliadoras sempre dizem que “não é oportuno tratar de assuntos polêmicos e complexos”. Em sociedades com imensa injustiça social que promovem e alimentam o que gera desigualdade social crescente, as pessoas moderadas sempre propõem que se “espere o momento oportuno” para tratar de assuntos polêmicos e complexos. Porém, para as classes violentadas, sem enfrentar os momentos “inoportunos”, nunca haverá “momento oportuno”. Governo fascista e genocida não é apenas incompetente para gerenciar políticas públicas, é também eficiente para matar de muitas formas sorrateiras. Em uma sociedade com tremenda injustiça social, o Estado não é apenas omisso, mas cúmplice da classe dominante, que goza luxo, mas encontra-se manchada com o sangue dos inocentes.

Diante do Acordão da mineradora Vale S/A com Governo de Minas Gerais e Instituições de (In)justiça, que usa e abusa da dor dos/as atingidos/as e pisoteia sobre seus direitos, é preciso dizer que este acordo feito às escondidas é imoral e será necessariamente lesivo para os interesses das vítimas que deveriam ser respeitadas como protagonistas. Mas o que ocorre é que a Vale S/A, criminosa e reincidente, continua sendo a protagonista no processo de negociação, dando todas as cartas, dominando e transitando livremente nos territórios, negando demandas legítimas de milhares de atingidos e de atingidas em toda a bacia do rio Paraopeba, em Minas Gerais. O caminho para a emancipação humana e social passa necessariamente pela centralidade e incidência dos oprimidos e vítimas deste grande crime/tragédia socioambiental, que vêm tentando se organizar, apesar das inúmeras dificuldades impostas ainda pela pandemia da COVID-19, por meio de comissões, conselhos e espaços participativos. Em uma sociedade desigual com estrondosa injustiça social, a verdade está sempre do lado dos explorados e violentados. O explorador é sempre mentiroso, mesmo que esteja travestido de verdade aparente. Em uma sociedade desigual e cruel, o normal e legal é sempre canal para envenenar as relações sociais. Não há paz como fruto da justiça onde há latifúndio e agronegócio, pois estes são violentadores da classe camponesa, da mãe terra, da irmã água e de toda a biodiversidade.

Quem violenta os terreiros, espaços sagrados dos/as irmãos/ãs do Candomblé e da Umbanda, são traficantes da fé cristã e traidores do Evangelho de Jesus Cristo, pois está escrito na Bíblia que “todos/as são imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,27), “templos do Espírito Santo” (1Coríntios 6,19) e o Deus da vida, mistério de infinito amor, “não faz distinção de pessoas” (Romanos 2,11).

Se as mineradoras dizem ‘mina’, devemos dizer cratera, pois de fato este nome retrata com mais fidelidade a realidade. Não dizem que é cratera, porque tendem sempre a esconder os imensos estragos que causam. Diante das injustiças sociais, os governos não são apenas omissos, são cúmplices, pois decidem de acordo com os interesses do capital. Assim, aqueles/as que assumem o Governo não apenas praticam descaso, mas, na prática, planejam como explorar e matar; não é falta de recursos, é opção por investir nos banqueiros e grandes empresas. O que o Estado aplica nas áreas sociais não é “gasto”, mas investimento. Não basta dizer “a empresa” está desrespeitando nossos direitos. É preciso dizer o nome da empresa e denunciar empresas exploradoras apontando seus nomes. “Dar nome aos bois” é preciso. Não bastar denunciar os grandes projetos, é preciso dizer que eles são projetos de morte, inerentes ao sistema que tem nome: capitalismo, que é máquina de moer vidas, não apenas humanas, mas também vidas vegetais e animais de todos os ecossistemas. Logo, não basta resistir, é preciso superarmos o sistema capitalista, o grande causador dos projetos de destruição. É preciso apontar nossa utopia: construção de uma sociedade socialista e respeitosa com as lógicas e místicas ancestrais dos Povos e Comunidades Tradicionais.

O imprescindível não é falar “devemos ter esperança”, mas gerar lutas que fazem parir a esperança, pois a esperança é filha das lutas populares por direitos. Sem lutas por direitos a esperança se definha e morre aos poucos. A luta por direitos constrói a esperança. Se militamos pela construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver, sob o signo da Ecologia Integral, nossa linguagem não pode ser poluída por palavras antiecológicas. Quando quiser reconhecer que alguém brilha e é uma pessoa lutadora não diga que ela “arrasou”, pois quem arrasa são as mineradoras e o agronegócio perpetrado pela classe dominante e opressora com o fomento do Estado. Não diga “menos favorecidos”, pois a questão não é de mais ou menos favorecidos. A questão é de superexploração de classe. Logo, mais do que “menos favorecidos”, os pobres são empobrecidos, violentados. Não lutamos apenas “por mais justiça”, mas pela construção de uma sociedade justa, pois a que temos não é justa. Não diga apenas que “são inverdades”, tenha a coragem de dizer “são mentiras”, pois não existem meias verdades e meias mentiras e “a verdade liberta” (João 8,32).

Sabemos que a linguagem não é tudo, mas sem linguagem revolucionária não se marcha rumo à revolução. Linguagem revolucionária exige opção de classe, não ser racista, não ser homofóbica, não ser machista e nem patriarcal, não ser eurocêntrica, nem antropocêntrica, nem antiecológica, mas, por outro lado, precisa expressar um jeito emancipatório diante de todas as opressões. Sempre devemos nos perguntar: o jeito que analiso e me posiciono diante dos problemas e injustiças beneficia a quem? Por isso, muitos que se dizem de ‘esquerda’, mas que levantam bandeiras específicas e discursos monotemáticos, devem lembrar que se faz mister buscar dialogar de forma transversal e solidária com as demais lutas e demandas do povo, também legítimas. Por exemplo, é contraditório alguém do grupo LGBTQI+ lutar pelos seus direitos e discriminar o Povo e Comunidade Carroceira, que é um Povo e Comunidade Tradicional com direitos garantidos pela Constituição de 1988 e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da ONU.

Há várias maneiras de ser cúmplice, para além do silêncio, da omissão e da inércia. Temos muito o que aprender com os povos originários e tradicionais que nos ensinam todos os dias, há milênios, que sem respeitar a Mãe-Terra, a ancestralidade e a história dos povos, não teremos condições de sustentar lutas objetivas e desvinculadas de um olhar diacrônico. Se nossa linguagem, que normalmente é fruto do que pensamos e fazemos, beneficiar à reprodução do status quo opressor, estaremos sendo cúmplice de opressão.[2]

02/03/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros – 29/7/2020

2 – Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 01 – Por Marcelo Barros – 22/072020

3 – Ocupação Vicentão/BH: das trevas em um prédio, à luz da libertação pela moradia/ 3a Parte.14/1/18

4 – Celebração da Teologia da Libertação na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15

5 – Palavra Ética, na TVC/BH: Delze e Gilvander. Filosofia da Libertação no II Congresso.. 23/09/14

6 – Nancy Cardoso no II Congresso de Filosofia da Libertação na UFRGS, dia 16 09 2014 em POA

7 – Filosofia da Libertação a partir dos povos Kaingang, com Pedro, parente Kaingang, 16/09/2014


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.