Luta que emancipa. Por Gilvander Moreira[1]
No Brasil, as classes trabalhadora e camponesa lutam muito. Que tipo de luta pode ser emancipatória? Por luta não nos referimos à luta diária individual e familiar para sobreviver de um/a trabalhador/a que recebe mensalmente apenas um salário mínimo, ou batalhando na economia informal como camelô ou fazendo bicos. É óbvio que esse tipo de luta é necessária e imprescindível para a sobrevivência de grande parte da classe trabalhadora. Não tratamos também de luta individualista na escalada de competição que o sistema capitalista desencadeia e fomenta aos quatro ventos: luta para entrar em uma universidade, luta de uma pessoa para ser aprovada em um concurso público, luta para se tornar um/a empreendedor/a, luta para enriquecer e se tornar uma pessoa opressora, às vezes ou muitas vezes, sem ter intenção deliberada de oprimir. Enfim, não é luta como trabalho no sentido de doulos, trabalho análogo à situação de escravidão.
Referimo-nos à luta pela terra e por todos os direitos sociais no sentido de um processo conflituoso, permanente, militante e que se constrói nas brechas das leis que sustentam a ordem estabelecida do capitalismo. Na luta, contamos com a contribuição do Direito Alternativo – brechas na legalidade do Estado capitalista -, ou luta travada como desobediência civil, dentro da consciência de que ou se conquista na marra ou não se conquista. Nessa perspectiva, nos inspiramos no Direito Achado na Rua – Direito Subversivo – http://www.odireitoachadonarua.blogspot.com – para conquistar transformações sociais por meio de conquistas de direitos sociais, entre os quais está o direito de acesso a terra. Segundo Roberto Lyra Filho, “direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas” (LYRA FILHO, 2003, p. 86).
Essa luta coletiva e subversiva envolve vários aspectos e dimensões: a) Trabalho de base para reunir os camponeses injustiçados, os sem-terra e despertar neles que somente através da luta coletiva, na união e com organização, se conquistam direitos sociais; b) Formação contínua para despertar nos sem-terra sua força e o seu potencial de emancipação muitas vezes abafado e acorrentado pela ideologia dominante; c) Organização e realização de Ocupações de latifúndios que não estão cumprindo sua função social; d) Organização interna nas ocupações, o que passa pela criação de núcleos de famílias, realização de reuniões e assembleias ordinárias diariamente, ou de dois em dois dias, ou pelo menos semanalmente. A organicidade da luta em uma ocupação exige a criação de Comissões de Segurança, de Saúde, de Cozinha e Alimentação, de Comunicação, de Ética e Disciplina, de Infraestrutura etc.; e) Organização e realização de lutas coletivas, tais como marchas, bloqueio de rodovias, acampamento diante do Tribunal, ocupação de prédios públicos onde são tomadas decisões que agridem a dignidade humana do campesinato; f) Constituição e cultivo de Redes de Apoio, como, por exemplo, Coletivos de advogados populares como a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP – http://www.renap.org.br ), a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais no estado da Bahia (AATR – http://www.aatr.org.br ) e Terra de Direitos – http://www.terradedireitos.org.br ; parcerias com igrejas, ONGs, professores e estudantes de universidades a partir de Programas de Extensão Universitária e outras organizações de luta por direitos humanos, nacionais ou internacionais.
A história da luta pela terra demonstra que a construção e o cultivo de todas essas dimensões e aspectos, de forma bem articulada e entrosada, são imprescindíveis para o êxito da luta, isto é, para que processos emancipatórios irrompam e se desenvolvam.
A luta pela terra diz respeito à disputa por território, questão também de soberania no sentido macro e de autonomia em sentido micro. O campesinato não precisa do capitalista e nem do proletariado porque, ao conquistar a terra, ele pode plantar e produzir o necessário para seu sustento e se reproduzir, mas o capitalista e o proletariado precisam do campesinato, pois sem a produção da agricultura camponesa, o proletário e o capitalista não se alimentam. Sem se alimentar, o proletário não terá força de trabalho para ser vendida no mercado ao proprietário dos meios de produção do capital. Eis um dos aspectos que nos faz levantar a hipótese de que a luta pela terra seja fator de emancipação humana.
A luta pela terra acontece por meio de luta coletiva. Não é via trabalho individual segundo o slogan “que cada um faça sua parte”, que é engodo. Cada um fazendo sua parte apenas tranquiliza consciências, mas não mexe em nada nas estruturas opressoras do sistema capitalista. Apenas migalhas se conseguem, o que doura a pílula, mas não retira o amargo. “O Estado brasileiro é como uma panela de feijão velho: só cozinha na base da pressão do fogo que se acende com os gravetos debaixo da panela. Os gravetos somos nós, empobrecidos e oprimidos, na luta coletiva” (Sebastião Mélia Marques, 54 anos, Sem Terra assentado no PA Primeiro do Sul e integrante da coordenação regional do MST do sul de Minas).
Referência
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2003.
Belo Horizonte, MG, 20/6/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
- Reocupação da Fazenda Canta Galo/Nova Serrana/MG: pelo rio Pará, por terra e moradia. 25/5/2018.
- Respeito às 200 famílias da Carolina de Jesus/BH: Negociação, sim; Despejo, não. 3ª Parte. 09/5/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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