O que não sabiam os moradores do Córrego da Saudade, área rural do município de Novo Cruzeiro, MG, pertencente ao Vale do Jequitinhonha, é que o crime/tragédia que viria a acontecer na tarde do dia 30 março de 2020 mudaria por completo aquela comunidade.
Por volta das 16h30 daquela segunda-feira ouviu-se um barulho vindo da mata como se fosse um grande incêndio consumindo toda a vegetação. Mas não havia fumaça ou sinal de fogo. De repente uma grande quantidade de água, como um tsunami, começou a invadir as propriedades doas dezenas de famílias de agricultores familiares da Comunidade e a “montanha de água” começou a destruir tudo o que encontrava pela frente. O barulho que parecera com fogo era o barulho da força da água destruindo tudo o que encontrava em seu caminho. Um agricultor gritava desesperadamente: “Corram! A barragem estourou!”
A barragem pertence à Fazenda Gravatá, de um grande proprietário da terras que não reside na comunidade e, sim, no Triângulo Mineiro (que naquele dia se encontrava na fazenda), e segundo os moradores, mais que depressa se evadiu do local sem ao menos verificar o tamanho do estrago causado, sem querer saber se tinha havido vítimas, ou se poderia fazer algo para auxiliar os atingidos. O fazendeiro preferiu fugir e mandar os advogados depois.
Segundo relatos, já havia risco do rompimento da barragem, mas que em nenhum momento o proprietário se prestou a informar aos moradores daquele risco iminente e naquele dia ocorria obras de reparação na barragem, o que pode ter levado ao desastre. Não se sabe se na obra de reparação havia algum engenheiro ou outro profissional orientando a intervenção das máquinas naquela barragem.
A água desceu montanha abaixo destruindo tudo o que encontrava pela frente, arrastando árvores, pedras gigantes e grandes quantidades de areia, abrindo clareira, matando animais e destruindo as plantações de mais de 40 famílias de pequenos agricultores. É o que relata a Sr. Valdeci, morador há mais de 40 anos daquela comunidade.
Sr. Valdeci e sua esposa, a Sra. Milinalva, vivem do cultivo de hortaliças que comercializam semanalmente na cidade de Novo Cruzeiro, distante apenas 6 quilômetros da comunidade. Tiram da terra a única renda e sustento da família, em torno de 3 (três) salários mensais com o trabalho árduo que a agricultura familiar exige. Encontramos o Sr. Valdeci cavando um poço a procura de água potável para o consumo em sua casa, sem sucesso em sua busca e agora depende da caridade dos vizinhos para poder ter água para beber, para o banho, para cozinhar e demais necessidades diárias. A sua plantação foi totalmente destruída, o casal está agora sem nenhuma possibilidade de renda para sustentar a sua família, tenta aos poucos reconstruir a sua horta do pouco que sobrou de suas terras agricultáveis, a camada fértil da terra foi levada pela água.
Encontramos também Sr. Orlando e sua esposa, Dona Rita, que tiveram perdas irreparáveis em suas terras, onde era um solo fértil, tornou-se um grande campo de areia. Relatam que o medo que sentiram naquele dia ainda não se foi, mesmo passado dois meses do desastre. Eles acordam durante a noite com medo e assustados, com pesadelos de que a água está destruindo a sua casa. O que era uma vida tranquila para esse casal de idosos, agora se tornou em tormento diário, onde os seus olhos não veem mais as suas plantações, apenas destruição.
O estrago do crime/tragédia se alastrou por mais de 12 quilômetros, atingindo de forma direta e indireta mais de 40 famílias de agricultores familiares. Entre estragos imediatos estão a destruição de casas onde os moradores tiveram perca de todos os móveis. Outros saíram apenas com a roupa do corpo.
Não se sabe até o momento em quais condições ficarão as terras para plantio e a água para consumo e irrigação. A água da barragem destruiu fossas sépticas e invadiu poços artesianos, contaminando a água potável (também não se sabe em que grau de contaminação), o mesmo aconteceu com a terra para plantio, onde era solo fértil, com anos de tratos e correções de solo, hoje não passa de uma camada grossa de areia ou um solo pedregoso sem condições físico-química para plantio, levará anos para aquelas terras serem cultiváveis novamente, segundo o Leandro, Engenheiro Agrônomo da FETAEMG (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais). A comunidade necessita de estudo técnico para fazer tais avaliações.
O que agora, 60 dias depois do crime/tragédia, os atingidos relatam é que estão sem nenhum suporte, mas que os advogados do fazendeiro estão diariamente na comunidade. Alguns se sentem inclusive coagidos, como relatou uma agricultora. Ela nos disse que o proprietário da Fazenda Gravatá enviou um topógrafo para medir as propriedades afetadas e que ela se sentiu ofendida vários momentos, pois o profissional a questionava de forma ríspida se ela falava a verdade sobre o tamanho da área que cultivava. Trata-se claramente de uma forma de diminuir o valor real de indenização que o fazendeiro terá de pagar.
Outra atingida disse que foi inúmeras vezes questionada pode parte da defesa, e de forma intimidatória e constrangedora, se ela era realmente proprietária de seu imóvel atingido. Como se não bastasse perder a única fonte de sua sobrevivência, esses agricultores e agricultoras têm agora a sua dignidade posta em dúvida por seus algozes.
A moradora Márcia perdeu todos os seus móveis, roupas e lembranças pessoais como fotos e diplomas. A Márcia está morando em uma casa que alugou e cujo o aluguel está sendo pago por ela, e até a presente data não foi procurada pelo fazendeiro para o pagamento do mesmo, nem se quer respondem às suas mensagens.
Em quatro semanas que se passaram do crime/tragédia, os poucos procurados pela defesa do fazendeiro receberam apenas um galão de água por semana e em todo esse período os atingidos receberam apenas uma cesta básica.
A defesa do fazendeiro apresentou uma proposta pífia para os atingidos, onde para alguns propuseram indenizações no valor de R$300,00, outros R$800,00. O fazendeiro e seus advogados querem apenas saciar as despesas e prejuízos imediatos como cercas quebradas e irrigações danificadas. Mas os prejuízos de longo prazo, onde levarão anos para serem recuperados, esses eles não levam em conta, bem como os incalculáveis impactos emocionais daqueles moradores. Isso é um ato de total falta de injustiça com os atingidos, que coloca o fazendeiro como alguém sempre aquém da vivência da Comunidade camponesa do distrito de Saudade.
Como se não bastasse, a defesa do Fazendeiro alega que não pode ajudar na recuperação das áreas agricultáveis pois “estaria infringindo o código ambiental pelo fato da área ser uma APP (Área de Proteção Permanente)”. Isso prova mais uma vez uma falta de conhecimento tanto do Fazendeiro quanto de sua defesa em relação a Comunidade Camponesa da Saudade, pois aqueles agricultores já viviam naquela área e já cultivavam aquela terra antes mesmo da criação da APA do Alto Mucuri, o qual a comunidade da Saudade está incluída. Não sabem também que a atividade dos agricultores são consideradas de baixo impacto, bem diferente da situação do fazendeiro, que com a sua ganância, devastou mais de 12 quilômetros com o rompimento de sua barragem. Os atingidos não estão ali apenas pelo lucro na exploração da terra, pelo contrário, muitos nasceram ali, cresceram ali e enterraram muito entes queridos ali. A relação deles com a terra é mais que comercial, é uma relação espiritual, afetiva.
Ainda de forma covarde, os atingidos estão passando da situação de vítimas para a de criminosos, pois o que acreditam ser uma forma orquestrada de retaliação, eles são constantemente denunciados aos órgãos ambientais seja pelo uso da terra ou pelo uso da água, inclusive estão sendo multados.
Com a intervenção da CPT (Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG) e da FETAEMG, medidas estão sendo tomadas para que algumas ações de cunho retaliatório e covarde não atinjam aqueles que perderam a única forma de renda. Como o uso da água por aqueles pequenos agricultores é considerado de uso insignificante de recursos hídricos pela legislação pertinente, cabendo apenas um simples cadastro nos órgãos responsáveis. As multas recebidas pelos agricultores são recorridas pela equipe técnica da FETAEMG.
Apesar de uso privado, a barragem da Fazenda Gravatá tinha uma importância estratégica para a Comunidade, que em tempos de seca que sempre assola o Vale do Jequitinhonha, os moradores procuravam o antigo proprietário para abertura do vertedouro da barragem e assim aumentar o fluxo de água no córrego que abastecia toda a comunidade, mas com o proprietário atual (responsável pelo crime/tragédia) esse pedido nunca foi atendido, não se sabe se por maldade ou falta de simpatia por aqueles moradores da Comunidade. Agora com a desastre, todo o curso e recurso natural do córrego afetado é dado como certa a falta de água na comunidade nos meses de seca, complicando ainda mais a situação daquele povo.
O que não queremos é que o crime/tragédia do Córrego da Saudade caia no esquecimento e fique impune. Já houve pouca repercussão na mídia local e regional. Esse crime/tragédia não foi da grandiosidade trágica dos das mineradoras VALE, SAMARCO e BHP, em Brumadinho e Mariana, mas para a vida de cada um daqueles que residem residem na Comunidade da Saudade, foi sim um crime/tragédia como os acontecidos em Brumadinho e em Mariana.
A Comissão Pastoral da Terra e as mais de 40 famílias de agricultores familiares exigem justiça.