Não basta comunhão espiritual. Exige-se fraternidade econômica. Por frei Gilvander Moreira[1]
Diante da avalanche de desencarnação da fé cristã e de tantos movimentos religiosos espiritualizando e volatilizando o Ensinamento e o Evangelho de Jesus Cristo, gerando com isso descompromisso com os explorados diante das injustiças sociais faz-se necessário resgatarmos a atuação das Primeiras Comunidades Cristãs para as quais ser ecumênico implicava enfrentar barreiras doutrinárias e superá-las.
Na Bíblia, no livro de Atos dos Apóstolos, barreiras doutrinárias são rompidas, uma a uma, até o capítulo 15, onde se vence a maior de todas: a necessidade de circuncisão. A partir de At 15,36, barreiras vencidas, as portas para uma evangelização inculturada e ecumênica são escancaradas. Eis, abaixo, algumas das muitas barreiras que foram superadas, em parte ou totalmente, pelas Primeiras Comunidades Cristãs, segundo o livro de Atos dos Apóstolos:
A mesa comum. Antes um judeu não podia entrar na casa de um pagão e, muito menos, comer com ele. Após sair de Jerusalém, da igreja-mãe, em missão, o apóstolo Pedro percorre todos os lugares e convive com os estranhos. Pela convivência e solidariedade, ao encontrar paralíticos, os cura. Pedro permanece vários dias na cidade de Jope, hospedado na casa de um curtidor de couro chamado Simão (cf. At 9,32-35.43). Entra na casa de um oficial militar romano, na cidade de Cesareia (At 11,12). Assim, ao conviver com os outros discriminados, a impossibilidade de mesa comum entre judeus e pagãos cai por terra.
A herança de Israel (Lei Mosaica) passa a ser de todos e não somente dos judeus. As primeiras comunidades fazem a experiência segundo a qual Deus não faz discriminação de nenhuma ordem (cf. At 10,15).
Templos e sinagogas não são mais os centros sagrados e orientadores da vida das comunidades, mas a missão acontece a partir das Casas (oikia, em grego). A casa de Simão, o curtidor de couro (At 9,43), a casa de Cornélio (At 10,1), a casa da Maria, mãe de João Marcos (At 12,12), a casa do procônsul Sérgio Paulo (At 13,7), a casa de Filipe, o Evangelista (At 21,8) etc.. De casa em casa, o projeto do movimento popular-religioso de Jesus de Nazaré irradia da Galileia, passando por Jerusalém, até os confins da terra: Roma, que era a capital do império Romano e considerada o centro do mundo. Entretanto, para as primeiras comunidades cristãs, segundo Atos dos Apóstolos, Roma passa a ser “fim do mundo”, lugar desprezível. O centro irradiador passa a ser Jerusalém, onde Jesus, inocente e justo, foi condenado covardemente, mas ressuscitou.
Os pagãos são aceitos nas comunidades cristãs, sem serem circuncidados. O Concílio de Jerusalém (cf. At 15,1-35) atesta um salto de qualidade na caminhada das primeiras igrejas cristãs ao concordar com os clamores da igreja periférica de Antioquia. que advogava a superação da barreira da circuncisão como condição para ser cristão.
A lógica e a ideologia do Império Romano vão sendo minadas e corroídas pela vida organizada em comunidades, e não mais sob a primazia do individualismo, da concorrência e nem da propriedade privada. As comunidades cristãs percebem que, diante de um império muito poderoso, a melhor estratégia é a infiltração e não o confronto. Como cupim debaixo da ponte, as comunidades cristãs vão solapando os falsos valores defendidos pela ideologia dominante do império. Viver em comunidade, lutar de forma coletiva e organizada passa a ser o facho de luz que ilumina o caminho rumo à construção de uma sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável ecologicamente, dizemos hoje.
O abismo entre Ricos e Pobres é revelado e se constrói pontes. Atos dos Apóstolos mostra pessoas legadas à institucionalidade aderindo ao projeto do Evangelho de Jesus Cristo. Assim sendo, começa a se tentar comunicação entre os opressores e oprimidos. Com a convivência com o outro marginalizado, com comunicação afetiva e efetiva muitos preconceitos, tabus e distanciamentos vão dissolvendo-se como o castelo de areia.
Patriarcalismo e o machismo são questionados pela presença e protagonismo das mulheres nas Primeiras Comunidades Cristãs, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da primeira hora[2].
A partir do encontro do apóstolo Pedro com o oficial militar Cornélio, desmorona a barreira cultural-religiosa e doutrinária entre judeus e não-judeus. Nos Atos do apóstolo Pedro (Atos 10,1-11,18), temos a narrativa de duas conversões entrelaçadas e interdependentes: a conversão de oficial militar Cornélio e de toda a sua casa-comunidade e a conversão de Pedro e de parte da igreja judeu-cristã hebraica de Jerusalém. À primeira vista, o Espírito atuou em Cornélio, mas observando nas entrelinhas, vemos que o Espírito agiu também e principalmente no apóstolo Pedro. Atualmente, o Espírito profético do Deus da vida atua do mesmo modo nas pessoas evangelizadoras e nas pessoas evangelizadas, independente das igrejas. Pedro evangelizava as comunidades judeu-cristãs das cidades de Lida e Jope. Sob o influxo do Espírito profético de Jesus ressuscitado, Pedro mudou seu programa e o levou onde ele jamais pensava ir. O rompimento/superação de barreiras doutrinárias e preconceitos convida para a comunhão total de vida. Eis outra característica do ecumenismo segundo o livro de Atos dos Apóstolos: comunhão total de vida.
O ecumenismo nos leva a um sentimento de pertença a todos e a tudo. Ser pessoa ecumênica implica sentir-se elo vivo da grande comunidade de vida, em uma comunhão real e total. Para o apóstolo Paulo e também para o evangelista Lucas, o que caracteriza as comunidades cristãs é uma comunhão total: material, espiritual com participação na mesma mesa. Não basta fraternidade espiritual ou de amizade, mas exige-se fraternidade econômica, política e cultural. O arcebispo emérito de Porto Velho, dom Moacyr Grechi, ao investigar denúncias de torturas de trabalhadores rurais boias-frias, disse: “Quero uma reunião somente com os trabalhadores, pois junto com os patrões eles não estarão livres para dizer a verdade.” Não agradam ao Espírito profético do Deus da vida pessoas que se encontram para a eucaristia aos domingos, mas que durante a semana oprimem e exploram a dignidade humana das/os trabalhadoras/es e/ou da mãe terra, da irmã água e outros seres vivos da natureza. O autor da Obra Lucana (Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos) quer romper as contradições entre grupos e as pessoas. Se ricos e pobres, judeus e não-judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões comem em lugares diferentes, moram em casas de condições muito diferentes, o cristianismo terá um conteúdo diferente para cada grupo e não haverá realmente comunhão verdadeira. É ilusória a fraternidade social e a democracia na qual: a) uns poucos se banqueteiam e outros passam fome; b) uns têm casas próprias, às vezes luxuosas, e milhões de famílias sobrevivem debaixo de pesadíssima cruz do aluguel – vítimas da falta de reformas agrária e urbana; c) uns acumulam demais, como os banqueiros e as empresas transnacionais, e outros têm sua força de trabalho roubada; d) uns vivem no luxo e outros sobrevivem do/no lixo; e) uns detêm os poderes econômico, político e midiático e outros são superexplorados. Enfim, uma igreja que se apega e casa com os poderes podres trocou o Evangelho de Jesus Cristo por uma aliança com forças capitalistas, diabólicas e opressoras.
A comunhão eclesial requerida pelo Evangelho de Jesus Cristo é, antes de tudo, uma comunhão material, corporal: as pessoas devem estar lado a lado, comerem da mesma comida, partilhando alegrias e angústias. Uma missão direcionada aos não-cristãos implica uma aproximação das relações sociais com gente considerada impura e fora da moralidade hegemônica. Olhando a partir dos/as excluídos/as das nossas igrejas, constatamos com pesar que a Lei do puro e do impuro, de modo disfarçado, continua em plena vigência.
Belo Horizonte, MG, 24/4/2018.
Obs.: Os 02 vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
- Via Sacra do Povo da Ocupação-Comunidade Dandara, em Belo Horizonte, MG. 30/3/2018.
- Luta une o povo das Ocupações Vila Esperança, no Betânia e Carolina Maria de Jesus, do MLB, em Belo Horizonte, MG. 12/1/2018.
[1]Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares Urbanos; Professor na pós-graduação de Direitos Humanos e Movimentos Populares no IDH, em Belo Horizonte, MG; e-mail: gilvanderlm@gmail.com– www.freigilvander.blogspot.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Cf. At 16,1.11-18.40; 17,4.12.34; 18,1; 21,5.9; 22,4; 23,16; 24,24; 25,13.23; 26,30.