Nota em defesa do Patrimônio Arqueológico Brasileiro, da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)

Nota em defesa do Patrimônio Arqueológico Brasileiro, da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)

Uma das pinturas em Caldeirão dos Rodrigues, no Parque Nacional Serra da Capivara. Crédito:  FUNDHAM

http://www.cptmg.org.br/portal/wp-content/uploads/2020/05/Nota-em-defesa-do-patrimônio-arqueológico-brasileiro-da-SAB-23-5-2020.pdf

Nota em defesa do Patrimônio Arqueológico Brasileiro, da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)

Nota da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) em defesa do Patrimônio Arqueológico Brasileiro, redigida após tomar conhecimento de falas proferidas, durante a reunião ministerial de 22 de abril de 2020 e divulgadas ontem, dia 22 de maio de 2020, pelo presidente da república que reduz o patrimônio arqueológico a “cocô petrificado de índio”, pelo ministro do meio ambiente que sugere aproveitar a pandemia para flexibilizar o licenciamento ambiental e pelo ministro da educação que diz que “odeia povos indígenas”.

Eis, abaixo, a Nota na íntegra.

NOTA EM DEFESA DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO BRASILEIRO.

Nesta sexta-feira (22/05/2020), a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) acompanhou com perplexidade as manifestações do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, durante a reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020, especialmente àquelas a respeito do Patrimônio Arqueológico Brasileiro. O Presidente da República se referiu à pesquisa arqueológica prévia nos trabalhos de licenciamento ambiental e ao patrimônio arqueológico demonstrando total falta de conhecimento dos processos e nenhuma preocupação com as heranças culturais deixadas por diversas sociedades que habitaram o solo que hoje chamamos por Brasil. Segundo o Presidente “O IPHAN para qualquer obra no Brasil, como parou a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô!”. Já o ministro Ricardo Salles propôs aproveitar o foco da imprensa na pandemia do coronavírus para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento” (…) o Meio Ambiente é o mais difícil, de passar qualquer mudança infralegal em termos de infraestrutura, instrução normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no Judiciário, no dia seguinte. Então para isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério do Meio Ambiente, de ministério disso e daquilo. Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação”. Completando, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub afirmou durante reunião ministerial que odeia o termo povos indígenas. “Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo, odeio. Ou povos ciganos. Só tem um povo nesse país […] é povo brasileiro […] acabar com esse negócio de povos e privilégios”. O Patrimônio Arqueológico Brasileiro, a que as gerações atuais e futuras têm direito, está protegido pela legislação brasileira, conforme consta na Carta Constitucional de 1988 (Artigos 20, 23, 24, 30, 215, 216), Lei Federal nº. 3.924/1961, Lei Federal nº. 7.542/1986, Lei Federal nº. 9.605/1998 (Capítulo 5, Seção 4), Resolução CONAMA nº. 001/1986 (Artigo 6, Alínea C) e, ainda, em Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Carta de Nova Delhi (1956), Recomendações de Paris (1962, 1968), Carta de Veneza (1964), Carta de Lausanne (1990), Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico (1990), Carta de Sofia (1996), todas aprovadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), órgão que faz parte da ONU (Organização das Nações Unidas). Os vestígios arqueológicos são bens únicos e não renováveis, que pertencem a toda sociedade brasileira. A Arqueologia é a ciência social que estuda, por excelência, os objetos deixados por inúmeras sociedades que habitaram e habitam determinada região, visando à compreensão de suas transformações ao longo dos anos. Essas pesquisas podem ser realizadas em âmbito acadêmico ou em projetos de licenciamento ambiental – correspondendo a grande maioria dos casos. É o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma autarquia federal vinculada hoje ao Ministério do Turismo, que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro e, assim pelo patrimônio arqueológico. Cabe ao IPHAN proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. O Instituto é o único responsável pela emissão de portarias que permitem a realização das pesquisas arqueológicas por arqueólogas/os de acordo com a Lei nº 13.653, de 18 de abril de 2018, e, bem como, pela fiscalização da qualidade científica dessas pesquisas, tanto no campo das pesquisas acadêmicas, como aquelas dedicadas ao Licenciamento Ambiental. Sendo assim, insinuar a flexibilização de qualquer procedimento ligado ao licenciamento ambiental ou diminuir o Patrimônio Arqueológico Brasileiro a “cocô petrificado de índio”, significa não só descumprir a Constituição Federal, acordos internacionais e demais legislações vigentes. Mais do que isso, trata-se de um ataque ao Patrimônio Arqueológico Brasileiro, bem único, não renovável e insubstituível em sua particularidade, e imprescindível para o fortalecimento de identidades e o reconhecimento de processos sociais de desigualdade e dominação. A proteção do Patrimônio Arqueológico Brasileiro é tarefa nobre do Estado brasileiro e deveria ser uma preocupação de primeira grandeza dos gestores de todo o País. O Patrimônio Arqueológico Brasileiro é um bem coletivo, e o direito a seu acesso e preservação é uma obrigação pétrea do Estado. A história do território que hoje chamamos por Brasil, vai muito além da chegada de Cabral em 1.500. São, pelo menos, 25 mil anos, de história desse lugar que era habitado por povos indígenas. A maior parte dessa história é contatada por meio dos vestígios materiais da cultura, estudados pelas/os arqueólogas/o, já que os registros feitos por escrito em documentos históricos contam, por meio da visão dos dominadores, apenas os últimos 500 anos dessa história. Os vestígios arqueológicos, ou seja, objetos deixados pelas diversas sociedades e povos que habitaram e habitam essa parte do planeta há milhares de anos é que recontam a história desse lugar. Negar a existência de povos indígenas no Brasil é desconhecer conceitos e não reconhecer a multiplicidade de etnias existentes no território brasileiro. Há mais de um século, arqueólogas e arqueólogos vêm realizando, heroicamente, milhares de pesquisas relativas às heranças arqueológicas no solo hoje denominado por Brasil. Muito já foi encontrado e estudado, mas em um país com a dimensão do Brasil, há, ainda, muitos sítios arqueológicos a serem pesquisados e descobertos. De fato, mesmo em um país que pouco investe ou valoriza a ciência, por meio de mais de 25 mil sítios arqueológicos já descobertos, outro país se torna, dia-a-dia, evidente. As pesquisas arqueológicas contam histórias que não estão escritas, dando voz a sociedades que foram marginalizadas da dita história do Brasil. Alguns exemplos do que já se conhece ajudam a dar a dimensão da importância do Patrimônio Arqueológico Brasileiro:

✓ Sítio Arqueológico de Santa Elina (Mato Grosso)

✓ Sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada (Piauí)

✓ Lagoa Santa (Minas Gerais)

✓ Calçoene (Amapá)

✓ Sambaquis (em vários estados: ES, RJ, SP, PR e SC)

✓ Sítios arqueológicos industriais (em todo país)

✓ As fortificações da costa brasileira (em todo país)

✓ Pesquisas na Amazônia e na Ilha de Marajó

✓ Sete Povos das Missões (Rio Grande do Sul)

✓ Geoglifos (Acre)

✓ Serranópolis (Goiás)

Alguns sítios arqueológicos encontrados em diferentes tipos de empreendimentos que só foram estudados graças à legislação vigente de licenciamento ambiental/arqueológico:

✓ Cais do Valongo – Rio de Janeiro/RJ – revitalização do Centro do Rio de Janeiro – Sítio na lista indicativa da UNESCO para se tornar patrimônio da humanidade

✓ Gruta do Gavião – Carajás/PA – área de mineração

✓ Sítio Lítico Morumbi – São Paulo/SP – área de construção civil

✓ Sítio Portocel – Aracruz/ES – área de silvicultura

✓ Geoglifos – Acre – linha de transmissão

✓ Sítio Pinheiros II – São Paulo/SP – área de construção civil

✓ Sítio arqueológico Caetetuba – São Manuel/SP – sítio de 12 mil anos – área de expansão de lavoura

✓ Porto de Santos – SP – dragagem do leito do porto

✓ Datação mais antiga para sambaquis no Espírito Santo – área de loteamento

✓ Arraial de São Francisco – Mato Grosso – área de mineração A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) é uma associação civil de caráter científico, de direito privado e sem fins lucrativos, que, há 40 anos, tem por objeto congregar arqueólogos e demais especialistas dedicados ao ensino, à pesquisa e à prática da arqueologia e áreas afins, visando promover o conhecimento e a divulgação de assuntos referentes à arqueologia e ao patrimônio arqueológico. A SAB acredita na valorização e fortalecimento da ciência como caminho para o futuro. Respeitar, entender e preservar os vestígios de nossa história são passos essenciais rumo a esse futuro. A SAB repudia falas que demonstram total desconhecimento e desprezo pela diversidade étnica e cultural do Brasil proferidas por gestores que tem a obrigação de zelar pela proteção do meio-ambiente, do patrimônio arqueológico e pela integridade dos povos indígenas.

Teresina, PI, 23 de maio de 2020.

Fonte: www.sabnet.org