Parecer Jurídico Constitucional Comunidade Pingo D’água. Projeto de Lei 162/2022. De autoria conjunta de 19 Vereadores da Câmara Municipal de Betim, MG. Por Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães[1]
Declara de Interesse Social para fins de desapropriação área no Bairro Pingo D’água no Município de Betim, MG. A Comunidade de moradores estabelecida nesta área há mais de dez anos, em legítimo exercício de seus direitos constitucionais, foi denominada “Comunidade Pingo D’água”.
Da constitucionalidade do projeto de lei 162/2022.
Da constitucionalidade e legitimidade da ocupação e constituição da Comunidade Pingo D’água.
1) O Brasil é uma república constitucional, federativa e democrática. Estas palavras significam princípios que são estruturantes e fundamentam toda a ordem constitucional e infraconstitucional brasileira. Isto significa que todas as leis, todos os atos administrativos, todas as autoridades públicas e todas as pessoas que se encontram em território nacional, devem obediência a estes princípios.
2) Esta é a grande conquista da modernidade: um estado e uma sociedade regida por uma Constituição, lei maior, que condiciona toda a ação estatal e particular, ao respeito de direitos fundamentais. Não há ordem constitucional, não existe Estado Democrático de Direito sem a declaração e proteção de Direitos Fundamentais.
3) Estes Direitos Fundamentais em nossa Constituição são, conforme compreensão hermenêutica pacificada no Brasil, direitos não hierarquizados e necessariamente complementares, logo indivisíveis. Isto significa que não podemos escolher um direito que melhor nos convier, em detrimento de outro. Esta escolha não existe. A indivisibilidade dos Direitos Fundamentais significa que estes direitos são interdependentes. Logo, não será possível a efetividade dos direitos de liberdade sem os direitos de dignidade.
4) A centralidade de toda a discussão constitucional é o ser humano. Este é o objetivo e fundamento primeiro da ordem constitucional democrática. O ser humano em toda a sua integridade: digno e livre. Desta forma, os direitos individuais, sociais, econômicos, políticos e culturais são inseparáveis, pois asseguram a vida digna e livre para todas as pessoas indistintamente.
5) Todo o ordenamento legal ordinário na Federação Brasileira deve obediência a estes princípios constitucionais. Nada na República pode contrariar estes princípios.
6) Outro fundamento de nossa ordem constitucional é a República: o princípio que sustenta que todos são iguais perante a lei é nuclear em nossa ordem constitucional. Este princípio sustenta que não serão tolerados privilégios e logo todos deverão ter liberdade e dignidade, materializados em direitos fundamentais como saúde, moradia, educação, previdência, segurança social entre outros.
7) O artigo 5º da Constituição Federal dispõe que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. O inciso XXIV do mesmo artigo, e, portanto, vinculado a este, determina que a lei deverá estabelecer procedimento de desapropriação por necessidade ou utilidade pública. A Constituição ainda dispõe sobre o direito de propriedade e a sua função social em outros dispositivos que regulamentam a propriedade rural e urbana.
8) Logo, seguindo o raciocínio até aqui desenvolvido, todas as leis infraconstitucionais, todos os atos administrativos normativos, todas as políticas publicas dos governos federal, estadual e municipal, assim como toda atividade privada deve observar obrigatoriamente estes princípios inseridos de forma sistêmica e lógica em nosso sistema constitucional.
9) Assim como não compete a ninguém eleger direitos em detrimento de outros, não pode também se eleger dispositivos legais ou constitucionais em detrimento de outros. A interpretação das leis, dos atos e da constituição segue necessariamente a lógica constitucional e nesta encontra seus limites. EXISTEM SITUAÇÕES ONDE A AUTORIDADE PUBLICA NÃO TEM ESCOLHA. NÃO É POSSÍVEL ESCOLHER UMA POLÍTICA PÚBLICA QUE SEJA CONTRÁRIA À CONSTITUIÇÃO.
10) O caso que se coloca é especialmente ilustrativo do que acabo de dizer:
a. Todo direito tem limite e o direito de propriedade passa a sofrer limites expressos em todos os ordenamentos jurídicos democráticos a partir do inicio do século XX.
b. Todo direito deve ser exercido. Quem não exerce seu direito pode perdê-lo para garantir direitos de outras pessoas. Por exemplo, um pai que tem a guarda do filho e não alimenta este filho, não o educa, não leva na escola, perderá o direito a sua guarda. Uma pessoa ou empresa que não exerce seu direito à propriedade, não paga os impostos, não cumpre a função social e utiliza a propriedade para ter ganhos irregulares, sem trabalho, por meio da especulação, perderá a sua propriedade.
c. As pessoas têm direito à moradia, a uma vida digna, a paz e a segurança. As pessoas da comunidade Pingo D’água não invadiram propriedade, ocuparam área no legítimo exercício de direito constitucional negado sistematicamente pelo estado. Parece estranho, ilógico, que, pessoas que têm direitos constitucionais não respeitados pelo estado, e por outras pessoas, sejam punidas por não receberem os direitos que a Constituição lhes assegura. Há um grave problema de lógica jurídica que diria ser insustentável.
d. As pessoas da comunidade Pingo D’água, de Betim, MG, estão ameaçadas de despejo e de serem jogadas na rua pelo estado e pelos que se dizem proprietários (Construtora MRV) (que perderam este direito, pois não o exerceram).
e. É interesse da sociedade que as pessoas desta mesma sociedade tenham moradia, paz, respeito, segurança, dignidade. Isto corresponde ao interesse social e isto sustenta a ideia de função social da propriedade. Se o lucro é reconhecido pela constituição ele deve advir de trabalho o que sustenta uma função social desta forma de ganho. No caso não há lucro, não há nem mesmo renda, não há mais direito à propriedade, pois esta tem que cumprir sua função social para ser garantida. No caso em tela há especulação ilegal, há especulação, há o interesse (e não o direito) de poucos, muito poucos, contra o direito constitucional de muitos.
f. O caso Comunidade Pingo D’água é de extrema clareza e simplicidade. Pessoas, seres humanos portadores de direitos de dignidade, liberdade, moradia, segurança, são ameaçados pelo próprio estado que neste caso se apresenta fora da lei. A Comunidade Pingo D’água foi lesada no seu direito de se defender, não teve direito ao contraditório garantido. Não pode o Juiz decidir fora da lei, contra a Constituição. O Juiz não pode se apegar a detalhes de regras processuais ou infraconstitucionais para descumprir a Constituição. A lei infraconstitucional não pode ser aplicada contra a Constituição. Isto é básico na hermenêutica constitucional contemporânea.
11) O artigo 182 da Constituição Federal dispõe que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. No parágrafo segundo está previsto novamente a função social da propriedade urbana e o parágrafo terceiro dispõe sobre as desapropriações de imóveis urbanos, prevendo prévia e justa indenização em dinheiro.
12) Por estes motivos o presente projeto de lei, PL 162/2022, não é uma benesse do poder público, não é uma escolha ou faculdade, é uma necessidade para o fiel respeito à ordem constitucional, é uma exigência de efetividade do texto constitucional. Não existe a escolha constitucional de expulsar estas pessoas. Isto seria gravíssima violação dos mais essenciais direitos constitucionais, uma violação dos fundamentos da república. Mais do que regimental, legal e constitucional, o presente projeto de lei representa uma solução constitucional para uma situação que pode, se resolvida de forma inadequada, trazer consequências indesejadas de violações de diversos direitos constitucionais.
Não é possível continuarmos submetidos a políticas públicas que violam a Constituição. Não existe a opção entre o ganho de poucos e o sacrifício de muitos.
Quanto à competência constitucional do município para legislar sobre o assunto não resta qualquer dúvida. É interesse do município a moradia, dignidade e segurança das pessoas que se encontram no seu território. O artigo 30, inciso I dispõe sobre esta competência.
No caso Comunidade Pingo D’água não há, nem mesmo o argumento sobre recursos. A solução do reconhecimento do direito dos moradores da Comunidade Pingo D’água pelo Judiciário poderia solucionar o conflito. O judiciário acolher uma Ação Civil Público que exige que se faça REURs (Regularização Fundiária e Urbana da Comunidade Pingo D’água) é um caminho judicial justo, pertinente e necessário. Agora está nas mãos do legislativo municipal solucionar a questão. Os antigos proprietários em sua omissão no exercício do direito perderam a propriedade e compete ao legislativo municipal regularizar a situação de maneira formal e definitiva declarando a área da Comunidade Pingo D’água como área de Interesse Social para fins de desapropriação para moradia popular.
Ao contrário, a omissão do legislativo municipal, do executivo municipal e o incorreto e inconstitucional posicionamento do judiciário podem trazer graves consequências ao bem constitucional mais caro: a vida de centenas de pessoas. A responsabilidade que o caso envolve é muito grande. São muitas vidas envolvidas.
A aprovação do projeto de lei 162/2022 é uma das soluções possíveis, e agora, diante da decisão inconstitucional do Judiciário, é a solução necessária e urgente para a proteção aos direitos constitucionais fundamentais de centenas de pessoas.
Belo Horizonte, 04 de julho de 2022.
[1] Professor Doutor de Direito Constitucional e Teoria do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (Faculdade de Direito da UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas).
[1] Professor Doutor de Direito Constitucional e Teoria do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas), e Presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Belo Horizonte, MG.
Pela 3a vez, Povo da Ocupação Pingo D’água na Câmara de Vereadores de Betim/MG: luta pelo PL 162, JÁ