Povo Indígena Kiriri não arreda o pé da luta pela terra no sul de Minas Gerais.
Por Fernanda Borges[1]
No mês de março do ano de 2017, doze famílias do Povo Indígena Kiriri, vindas da Aldeia Kiriri de Barra, localizada no município de Muquém do São Francisco, região Oeste da Bahia, ocuparam uma área, de aproximadamente cinquenta e cinco hectares, doada pelo estado de Minas Gerais à Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), no município de Caldas, na região sul de Minas. Os moradores do bairro rural do Rio Verde, onde a área ocupada pelos Kiriri está localizada, garantem que não houve, desde o momento da doação das terras, a presença de membros da UEMG no local.
No início da ocupação, os Kiriri montaram algumas barracas de lona na localidade e ali permaneceram por pouco mais de um mês. Atualmente, passaram de 12 para 16 as famílias ali instaladas em casas de pau-a-pique, cobertas por lonas ou telhas doadas pela comunidade. Desde o início da ocupação, os Kiriri recebem ajuda da comunidade local. Contudo, foi no mês de abril de 2018, após o recebimento de uma liminar de reintegração de posse, que estes laços entre o Povo Indígena Kiriri e a Comunidade do Rio Verde se aprofundaram e se fortaleceram.
No mês de agosto de 2017 realizou-se um acordo entre os indígenas, o estado de Minas Gerais e a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) que deveria tentar encontrar outras terras para os Kiriri. Contudo, apesar desse acordo, já em março de 2018, os indígenas receberam uma decisão judicial a partir de exigência da UEMG para reintegrar-se na posse da propriedade. Com a aproximação dos trinta dias de prazo para o cumprimento da liminar de reintegração, diante de nenhuma resposta da FUNAI ou do estado de Minas Gerais, os Kiriri entraram em contato com o Governo de Minas. A partir do contato, realizado no mês de abril, o grupo soube que a decisão do juiz, tomada em caráter de urgência, poderia ser cumprida a qualquer momento, já que a data limite para saída da localidade foi estipulada para o dia quinze de abril de 2018. Diante daquela situação de pressão para a retirada os indígenas da área ocupada e informado por representantes do Governo de Minas sobre a existência de uma terra no município de Patos de Minas, região do Alto Paranaíba, os Kiriri decidiram, amplamente apoiados e influenciados por representantes do estado de Minas Gerais, a se mudarem para esta nova terra.
Assim, na segunda-feira, dezesseis de abril de 2018, os Kiriri recolheram seus poucos pertences e as telhas de suas casas e esperaram o caminhão de mudança oferecido pelo estado de Minas Gerais chegar ao Rio Verde para dar início ao trajeto a ser percorrido até as terras de Patos de Minas. O caminhão não chegou, mas a Comunidade do Rio Verde, sim. Com cartazes e pedidos de permanência dos Kiriri naquela área, cerca de cinquenta pessoas ofereceram apoio e lágrimas de despedida ao grupo. Mesmo com este amparo da comunidade e com a visibilização do caso pela mídia local, os Kiriri partiram acreditando em uma promessa do Governo de Minas que se revelaria falsa.
Representantes do estado de Minas propuseram que estas famílias Kiriri ocupassem uma propriedade rural privada, localizada a setenta quilômetros da cidade de Patos de Minas, onde já havia uma ocupação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e de alguns indígenas Xukuru-Kariri. Dessa forma, as famílias Kiriri tiveram que deixar suas casas de morada no Rio Verde, deixando para trás camas, mesas, trabalho, plantações, além dos vínculos e afetos criados na comunidade de Rio Verde, em um domingo chuvoso, para irem para uma terra incerta, desconhecida e completamente desassistida pelo governo do estado de Minas Gerais e pela FUNAI.
A terra ofertada aos Kiriri em Patos de Minas não possuía água e não se configurava como uma terra fértil para o plantio. Ainda, os indígenas não possuíam trabalho nesta região, bem como casas ou laços afetivos locais. Após a ida do Povo Kiriri para este município, representantes do estado de Minas Gerais, que haviam prometido madeira e lonas para que estas famílias construíssem barracos, não mais apareceram na localidade, nem atenderam as ligações do cacique do grupo e nem cumpriram as promessas. Assim, o grupo de indígenas Kiriri sobreviveu alguns meses em barracos construídos com cobertor. Além disso, devido à falta de trabalho e de terras agricultáveis, os Kiriri passaram por necessidades básicas, como, por exemplo, a falta de alimentos básicos, como arroz e feijão.
Diante dos diversos problemas enfrentados nas terras estranhas de Patos de Minas, os Kiriri decidiram voltar para o sul de Minas. Com a ajuda da comunidade rural do Rio Verde em Caldas, conseguiram um caminhão para trazer suas coisas de volta à localidade de Caldas. Assim, atualmente, as 16 famílias estão aguardando decisão do estado de Minas Gerais, junto à UEMG e à FUNAI. Agora, com o profundo apoio da comunidade local de Rio Verde, os Kiriri estão determinados a nunca mais saírem da terra ocupada por eles em março de 2017 e que, por decisão judicial e pressão da prefeitura de Caldas, da Polícia Militar e do Governo de Minas, tiveram que sair para uma aventura dolorosa em busca de terra em Patos de Minas.
No dia 09 de outubro de 2018 cerca de quinze pessoas do Povo Kiriri do Rio Verde/Caldas estiveram na Cidade Administrativa, na sede do Governo de Minas Gerais, em Belo Horizonte, MG, após o recebimento de uma nova liminar de reintegração de posse no dia 26 de setembro de 2018, para reunião com representantes do Governo de Minas e FUNAI, com o objetivo de pressioná-los para que seja reconhecido o direito do Povo Indígena Kiriri permanecer na terra que ocupam em Caldas. Nesta reunião, foram relatados os momentos de dificuldade vivenciados pelos Kiriri, bem como sua determinação de permanecer na terra que ocupam no Sul de Minas. Além dos quinze indígenas presentes, a reunião contou com representantes da comunidade rural do Rio Verde, da FUNAI, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Neste encontro decidiu-se que representantes da Mesa Estadual de Diálogo e Negociação se reunirão com a UEMG para solucionar o conflito agrário, cultural, histórico e social.
Resgatar a história da perspectiva dos povos indígenas é imprescindível para a retomada das terras expropriadas das centenas de povos indígenas que existiam em Minas Gerais. A arqueóloga e historiadora Alenice Baeta, do CEDEFES, pontua com alegria: “Há muitas possibilidades de conexões entre as memórias indígenas pré-coloniais do Vale do Rio Verde: o desterro dos povos Tupi-guarani que deixaram tantos vestígios de suas passagens e os importantes rastros de tantos outros povos indígenas e africanos escravizados no período colonial no ribeirão dos Bugre – uma importante chave entre os diversos passados que se unem na região de Caldas, no sul de Minas Gerais. No limiar do século XXI, a chegada dos Xucuru-Kariri advindos de Palmeira dos Índios, de Alagoas, e mais recentemente dos Kiriri que vieram da região de Muquém do São Francisco, da Bahia. Esta terra banhada pelo Rio Verde e suas inúmeras cachoeiras é mesmo sagrada, tendo sido abençoada e escolhida por estes povos, para uma nova morada. Mas foi ainda abrigo ou refúgio do psicanalista, filósofo, pedagogo e escritor Rubem Alves, um dos fundadores da Teologia da libertação que lá tinha um lugar especial em Pocinhos do Rio Verde, que fez a grandiosa montanha ‘Pedra Branca’ ficar ainda mais encantada com os seus belos poemas. Em Pocinhos teria produzido tantos encontros, contos e textos tão inspiradores para muitos. Atraiu para lá um amigo muito peculiar – o nosso precioso mestre da história indígena: o professor John Monteiro. Duas pessoas que certamente deixaram muitas saudades, mas legados inigualáveis e inesquecíveis. Lembro-me de John Monteiro dando um seminário na UNICAMP sobre uma de suas obras: ‘Negros da Terra’… Que pessoa generosa, humilde, grandiosa, sábia. Impressionante as suas percepções e saberes sobre este temário. As leituras de seus textos sobre os povos indígenas e suas trajetórias inundam a nossa alma de luz e força. […] Que as terras do rio Verde continuem a emanar tantas histórias lindas, abrindo novos capítulos das lutas, resistências e conquistas dos indígenas Kiriri do Rio Verde de Caldas, outros tantos capítulos da longa história deste fantástico povo guerreiro nas terras mineiras”.
Com a ajuda dos encantados e com o apoio firme da comunidade do Rio Verde, do CEDEFES, da CPT, entre outros da grande Rede de Apoio, o Povo Indígena Kiriri não arreda o pé da luta pelo seu território, luta justa, legítima e necessária. Viva a luta indígena pelos seus territórios! Nenhum direito a menos!
Campinas, SP, 20 de outubro de 2018.
[1] Antropóloga Mestranda em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto acima.
1 – Povo Indígena Kiriri em luta e resistência por território em Caldas/MG. 09/10/2018.
2 – Índios Kiriri – Minas em Rede (última reportagem do “Minas em Rede, no link, abaixo).