São José de Brumadinho, sob Herodes: a Vale. Por Gilvander Moreira[1]
Sem apresentar estudo sério e idôneo, a mineradora Vale anunciou, dia 18 de novembro último (2020), a elevação do nível de emergência para 2 da barragem Norte/Laranjeiras em Barão de Cocais, MG. Tal justificativa foi também usada para a retirada forçada de mais de 30 famílias e mais de 800 animais na região das comunidades de Laranjeiras e São José de Brumadinho, onde encontra-se o Santuário de São José. A barragem, que tem 56 metros de altura e 32,3 milhões metros cúbicos de volume, já estava interditada desde março deste ano, pela falta de Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) exigida pela Agência Nacional de Mineração (ANM). A estrutura está classificada como de Dano Potencial e Categoria de Risco (CRI) altos e desativada desde 2019, mas, segundo os trabalhadores, ela não apresenta riscos de rompimento iminente. Com esse anúncio, as famílias vivenciam situações marcadas pelo terrorismo psicológico promovido pela Vale e pelos funcionários do poder público municipal e estadual. Todo o território tem sido alvo de tentativas de apropriação pela Vale há anos, desde o início de implantação da mina Brucutu, em 2006, em região próxima. Agora, a empresa se aproveita desse difícil momento em meio à pandemia da Covid-19 e usa a elevação do nível de emergência da barragem como estratégia para se apropriar de mais um território.
Essa é a estratégia recente que a Vale tem utilizado para invadir, se apropriar e controlar os territórios de interesse da mineradora e, pior, com apoio do Estado. Assim foi com a região de Socorro, em Barão de Cocais, que desde 08 de fevereiro de 2019 sofreu remoção forçada e que tem sido tomada por inúmeros projetos de exploração mineral, inclusive da própria Vale. O mesmo foi realizado no distrito de Antônio Pereira, no município de Ouro Preto, MG, com a remoção forçada de dezenas de famílias e que também é alvo de projetos de expansão minerária da Vale. Recorde-se do absurdo que foi o desgoverno Bolsonaro ter colocado “mineração como atividade essencial” durante a pandemia. Com essa ‘carta branca’ do Estado, a Vale tem disseminado covid-19 nos territórios e continua de forma acelerada sacrificando povos, a mãe terra, as águas e toda a biodiversidade em nome do acúmulo de lucros exorbitantes. E continua matando de mil formas em todos os territórios das bacias do Rio Paraopeba e do Rio Doce.
As comunidades de São José de Brumadinho e Laranjeiras possuem uma extraordinária história de resistência ao avanço do projeto de mineração da Mina do Brucutu, que visa transformar em um grande complexo de barragens de rejeitos a região que é um paraíso natural, ecológico e cultural. As comunidades possuem patrimônios culturais tombados pela Prefeitura e o Santuário de São José de Brumadinho é reconhecido como um local de peregrinação e encontros religiosos. Uma das Comunidades que está sendo expulsa pela Vale abriga o Santuário de São José de Brumadinho, onde, segundo devotos de São José, aconteceu um milagre em 1742 e, por isso, a região recebe mensalmente, no dia de São José, centenas de pessoas que vêm exercer sua fé e celebrar com o padroeiro dos trabalhadores.
A Mina de Brucutu, a maior da Vale no estado de Minas Gerias, está em plena expansão e ameaça toda a região do distrito de Cocais. A barragem de rejeitos do Torto já está em instalação, há o plano de construção de uma terceira barragem, denominada Tamanduá, que junto com a barragem Norte/Laranjeiras transformará o território em um complexo de reservatórios de rejeitos. Ademais, a cava do projeto da Mina de Brucutu segue em direção à sede do distrito de Cocais e planeja o desvio de um trecho da rodovia estadual MG-129, a estrada mais importante de ligação dos municípios da região.
Essa é mais uma ação criminosa da Vale que conta com a cumplicidade do Estado em utilizar o terror das barragens para fazer remoções forçadas em territórios onde a criminosa reincidente possui interesse em ampliar mineração devastadora. Muitas famílias estão resistindo a sair dos locais até possuir todas as informações da condição de segurança da barragem e as comunidades não abrirão mão de seu local sagrado, o Santuário de São José de Brumadinho. “São José fica e a barragem sai!”, eis o lema da luta no território sob a sanha insaciável de acumulação de capital da Vale.
Com o apoio do Estado, a mineradora Vale, contumaz servidora da idolatria do mercado e do capital, avança fazendo guerra contra os povos, os territórios e toda a biodiversida. A Vale, que já tentou comprar várias propriedades na região, está removendo os sitiantes para casas alugadas na cidade. Todos os moradores desalojados da comunidade de Socorro, que foram tirados de suas casas devido ao risco de rompimento da barragem Sul Superior, de Gongo Soco, em fevereiro de 2019 ainda não puderam voltar para casa, mesmo sem o rompimento que não aconteceu. Alguns venderam seus terrenos para a mineradora e mesmo aqueles que ainda os mantêm tiveram sua vida bastante modificada para pior. A vida deles nunca mais será a mesma. “A criminosa Vale mata nossos sonhos e nosso direito de viver todos os dias”, dizem as pessoas atingidas de mil formas.
O sítio do senhor Miguel Antônio de Almeida, de 85 anos, foi o primeiro a ser “visitado” por funcionários da Vale e da Defesa Civil. Sr. Miguel ouviu de um coordenador da remoção forçada: “Nos próximos 20 dias, vamos trabalhar a mudança do senhor e de todas as pessoas desta comunidade.” Uma funcionária da Vale foi incisiva: “Tem que sair, não tem como vocês ficarem aqui, estamos seguindo um protocolo da Defesa Civil. Não tem a opção de não querer ir. Será feito um inventário de tudo do sítio e vocês vão receber uma cartilha com todas as orientações”. Sr. Miguel, aterrorizado, ainda encontrou força para ir cuidar de algumas vacas no curral e desabafou: “A minha vida está aqui neste lugar. Se eu sair daqui, morro”. O filho do Sr. Miguel, Délcio Almeida, contou que o pai levanta todos os dias de madrugada, às 3h30. “Isso aqui é a vida dele. Ele capina, tira leite e faz queijo. A minha mãe veio para aqui para construir esta casa, devido à capela de São José do Brumadinho, aqui em cima. Ela faleceu em 2014, e amava este lugar. Não pode fazer isso com a gente. Aqui é onde a nossa família gosta de viver”, afirmou.
Dia 6 de dezembro último, Dom Vicente Ferreira, bispo da Arquidiocese de Belo Horizonte, da região de Brumadinho e da Comissão de Ecologia Integral da CNBB, celebrou missa diante do Santuário de São José do Brumadinho, em Barão de Cocais. Na homilia, Dom Vicente profetizou: “Sob cruel perseguição do rei Herodes, São José teve um sonho de que deveria fugir para o Egito com Maria e Jesus para salvar o menino Deus. Nosso sonho, agora, diz: São José fica e a barragem é que deve ser retirada! Nós queremos São José aqui! O Santuário não pode ser retirado daqui. Ontem, Herodes; hoje, a Vale. De que vale louvar o Pai do céu, se estamos matando a mãe Terra? Juntar a prece e nos apressar na luta por tudo o que é justo, eis nossa missão. A Vale faz propaganda mentirosa e enganosa. Temos que ficar indignados e revoltados diante da ganância sem fim desta mineradora que só pensa em destruir. Urge conversões eclesial, ecológica e cultural. Precisamos sair às pressas para lutar em defesa da Casa Comum. Não temos a opção de desistir, pois quem desiste morre aos poucos. A história é cheia de dragões e Herodes. Não podemos ter medo de nominar os Herodes de hoje. Jamais a Vale vai matar a nossa capacidade de sonhar um mundo justo. Quem deixar algum atingido para trás terá que prestar contas a Deus. A única coisa que a Vale quer é dominar os territórios para ganhar mais dinheiro. A Vale troca a vida pelo lucro.”
Reproduz-se em Minas Gerais, no Brasil e no mundo a luta de Davi contra Golias e, segundo o livro do Apocalipse, a luta da mulher em dores de parto ameaçada por um dragão cuspindo fogo para devorar a criança que está na iminência de nascer. Assim como Davi venceu Golias e a mulher venceu o Dragão do Apocalipse, a mineradora Vale e o Estado cúmplice serão vencidos pelo povo que segue se organizando e resistindo de cabeça erguida. A Vale, apesar de parecer invencível, pode e deve ser derrotada pois usa de mentiras, está recheada de contradições e, por isso, tem “pés de barro”, sangue nas mãos e espalha um vírus letal do seu corpo para as pessoas e os territórios onde atua[2]. Enfim, de fato, a Vale “é a morte, é o mercado financeiro… A Vale não vale nada, nada…”
08/12/2020
Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale
2 – “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO – 07/12/2020
3 – “Basta de atrocidades! Exigimos justiça!” – 2ª Parte – Por frei Gilvander – 06/12/2020
4 – A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander – 06/12/2020
5 – “Estado, não venda nossa dor para a Vale!”, atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20
6 – “A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo.” – 2ª Parte – Por frei Gilvander – 05/12/2020
7 – Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência – Por frei Gilvander -1ª Parte – 05/12/2020
8 – PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida
9 – Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20
10 – “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.