Um Engenho que sumiu… Sobre uma ‘Memória da Destruição’, em Lagoa Santa, MG
Sítio Arqueológico ‘Engenho do Fidalgo’, composto por peças de madeira de lei encaixadas, conjunto de canais de água e zonas de plantio, exemplar magnífico de Paisagem Cultural (Bem de interesse Material e Imaterial). Município: Lagoa Santa. APA CARSTE DE LAGOA SANTA, MG.
Por Alenice Baeta[1] e Hugo Sales[2]
O antigo engenho conhecido como ‘Engenho do Fidalgo’ situava-se na antiga fazenda homônima, município de Lagoa Santa, na APA CARSTE DE LAGOA SANTA, MG, localidade de referência das primeiras instalações ou pousos dos primeiros exploradores bandeirantes que por ali se adentraram a procura de ouro e pedras preciosas, além do aprisionamento de indígenas e apropriação de novas terras.
A Fazenda Fidalgo, que interligava a região de Sabaraçu aos desconhecidos sertões, faz parte de um antigo roteiro na região central de Minas Gerais e o seu antigo engenho, aqui tratado, configurava importante e raríssimo modelo etnoarqueológico, pois tratava-se de uma antiga estrutura típica de produção colonial ou ‘rancho’ mineiro na bacia do rio Uaimií ou Guaicuy (hoje, Rio das Velhas) na língua Tupi-Guarani. Além do interesse arqueológico, histórico e arquitetônico-vernacular, este bem cultural ainda tinha grande interesse no âmbito da sua natureza imaterial ou intangível, tendo merecido ter sido inventariado e associado à categoria ‘Cultura Alimentar Colonial’, bem como, aos componentes ‘Saberes’, ‘Lugares’ e ‘Patrimônio Mineiro’.
O ‘Engenho do Fidalgo’ situava-se em encosta bem suave, onde ao seu redor havia roças de milho e cana de açúcar, ladeadas ainda por uma série de canais de água. Defronte a esta estrutura há trecho de caminho real onde houve importante embate entre o superintendente das minas (o fidalgo D. Rodrigo de Castelo Branco) e comparsas da expedição de Borba Gato, originalmente integrante da Bandeira de Fernão Dias. O lugar onde se inseria o antigo engenho era fortemente relacionado a esta memorável emboscada ao Fidalgo, por isto, essa nominação à gleba. Além dessa tocaia, o local é ainda associado a uma série de conflitos e violências relacionados à expansão das fronteiras coloniais e disputas de poder, que ocorreram sucessivamente no vale do rio das Velhas, incluindo o povoado Sumidouro, onde ocorreram inúmeros assassinatos, devido conspirações e traições entre os comparsas, além de inúmeras perseguições a indígenas.
Este engenho estava praticamente completo até o ano de 2009, mas foi totalmente destruído, e de uma vez (possivelmente em um único final de semana) quando as suas peças componentes foram desmontadas e levadas do local original, obviamente, sem ciência dos órgãos patrimoniais. Imagina-se que as peças componentes desse engenho possam ter sido equivocadamente comercializadas. O ‘desaparecimento’ deste bem cultural, tão raro, configura mais um absurdo no âmbito do patrimônio cultural, paisagístico e histórico de toda a APA Carste de Lagoa Santa.
Que práticas como essa, relacionadas ao apagamento de memórias e mutilação de territórios culturais e tradicionais, associadas ao desmonte e/ou comercialização ilícita de bens patrimoniais e arquitetônicos, sejam fortemente combatidas em nosso país.
A educação patrimonial popular, o inventário, a documentação e o incentivo ao turismo cultural de base comunitária deveriam ser incentivados na APA Carste de Lagoa Santa urgentemente, combatendo a ‘minerodependência’ e empreendimentos nocivos (como o da fábrica de cerveja Heineken que pretendia se instalar dentro da APA Carste de Lagoa Santa, por exemplo), que vêm ameaçando continuamente esta belíssima região cárstica, seus ecossistemas, bem como o seu patrimônio hídrico, espeleológico, arqueológico, paleontológico e sociocultural.
Além da paisagem abruptamente desfigurada, ficam algumas falas de antigos moradores do Guaicuy, sentidos ememórias de um antigo engenho que estranhamente ‘sumiu do lugar’…As lembranças persistem…Mas, ainda ‘Procura-se’.
[1] Historiadora e Arqueóloga. Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação-FAE/UFMG; Membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios- ICOMOS-Brasil – e do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES).
[2] Estudante de Arqueologia no Departamento de Antropologia e Arqueologia da FAFICH/UFMG; Membro do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES).